(A VIDA ENTRE PARÊNTESES)


 

 

 

 

 

 

 

(A VIDA ENTRE PARÊNTESES)

Luís Ene

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 “É impossível saber se o homem se servirá ainda durante muito tempo da palavra, ou se recuperará pouco a pouco o uso do uivo.”

Emil Cioran

 

“If you really want to do it, you do it. There are no excuses.”

Bruce Nauman

 


 

 

 

Que vozes são estas que escutei com a ponta da esferográfica encostada de leve à superfície árida da folha de um vulgar caderno de capa preta? Não sei!

Precisei de toda a minha atenção para as ouvir; chegaram-me de longe, ameaçadas por um ruído branco que teimava em persegui-las. Se não as escrevesse, elas não existiriam, porque só eu as escutei, porque só para mim falaram.

Por isso as escrevi, porque só eu o podia fazer, e porque elas tanto se esforçaram para chegar até mim, vencendo a minha surdez e a sua afazia. Por isso as escrevi, para de novo as escutar, para que de novo se fizessem ouvir.


 

 

 

 

 

ABRIR PARÊNTESES

 

Não sou inocente, um homem morreu e fui eu que o matei. Não terei uma segunda oportunidade. Nunca poderei evitar a sua morte. E perante isto pouco mais importa. Não me é possível deixar de o matar, tudo se passa afinal como se voltasse a matá-lo, repetidamente, até não ter qualquer importância e, no entanto, ter toda a importância.

 

*

 

Nunca sei ao certo há quanto tempo estou preso. Primeiro tenho de me recordar qual foi o dia em que me prenderam, depois tenho de fazer contas e, mesmo assim, às vezes engano-me. Estou-me nas tintas para quanto tempo já passou. Será sempre tempo de mais e será sempre tempo de menos.

 

*

 

A minha mãe disse que eu tinha de o ver, era o meu pai, precisava de mim. Respondi-lhe que não tinha pai, nunca tivera pai, e ela disse que eu podia não ter pai, no entanto ele era o meu pai e, fosse como fosse, precisava de mim; precisava tanto de mim como eu precisava dele. Respondi-lhe que não precisava de um pai, nunca tivera um pai e nunca precisara de um pai. Ela limitou-se a repetir que ele era meu pai e precisava de mim. Calei-me. Sou teimoso, muito teimoso, saio à minha mãe, e aprendi muito cedo que é escusado insistir com ela quando mete uma coisa na cabeça.

 

*

 

À minha frente estava um homem magro, de meia-idade, com um rosto inexpressivo e sem quaisquer sinais particulares. Um estranho. Estava sentado quando eu entrei e assim continuou, imóvel, apenas o seu olhar se moveu na minha direcção e me acompanhou até me sentar. Depois baixou o olhar para o tampo da mesa, no que me pareceu mais um gesto de pudor do que de timidez. Aquele homem, aquele estranho, era o meu pai. Perguntei-lhe porque estava em greve da fome e ele respondeu-me sem surpresa, como se eu ali apenas estivesse para lhe fazer aquela pergunta e ele ali apenas estivesse para a responder.

 

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À minha frente estava um jovem alto e magro, com extensas tatuagens a cobrirem-lhe os braços nus. Poderia ser mais um preso, não fosse a altiva serenidade que parecia animá-lo. Não lhe encontrei quaisquer parecenças comigo, e quando me perguntou porque estava em greve da fome, respondi-lhe como teria respondido a um jornalista, e só quando terminei de lhe explicar e ele ficou a olhar para mim em silêncio, só então disse a mim mesmo que aquele era o meu filho.

 

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Existem muitas formas de perder o juízo, e uma delas é sem dúvida viver no completamente no presente. Foi o que me aconteceu e é, estou convencido disso, o que ainda me acontece, porque me habituei durante muitos anos a recusar o futuro

*

 

Não lhe pedi explicações, e ele não as deu, apesar de ter sempre respondido às minhas perguntas, com o que me pareceu a maior honestidade e a maior verdade possível. Por seu lado, não me fez quaisquer perguntas, e quando o interpelei porquê, limitou-se a sorrir e a desculpar-se. Estava demasiado feliz para fazer perguntas, disse-me com um sorriso ténue e, confidenciou-me após um breve silêncio, a felicidade deixava-o sempre atordoado.

 

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Não posso afirmar que desde que entrei aqui tenha desejado alguma vez a vida lá fora, tenho vivido sempre o dia a dia, e a vida lá fora não faz parte desse dia a dia.

 

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Quando fui preso os jornais ainda falaram de mim durante algum tempo, mas depois perderam o interesse. Chamaram-me o último dos verdadeiros revolucionários, o assassino vermelho, e apareci nas primeiras páginas. Descobriram fotos e factos antigos, e às vezes tinha dificuldade em perceber se me condenavam por ser um perigoso assassino ou um furioso revolucionário.

 

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Trabalhei sempre, nem sei porquê. Comecei muito novo, durante as férias escolares, e nunca mais deixei de o fazer. Trabalho mal pago, mas que me permitia o contacto com as pessoas e alguma autonomia. Cafés, bares, horários quase sempre nocturnos, uma certa marginalidade que sempre me agradou. Gostava de trabalhar só para mim, de ficar por minha conta, no entanto ainda não consegui vislumbrar uma forma de o fazer.

 

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A partir de certa altura perdi o juízo, e isso sucedeu muito antes de ter acontecido o que aconteceu e me levou à prisão. É claro que então não dei por isso e continuei a fazer o que antes fazia, como se nada tivesse mudado.

 

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Acredito que se pode perder o juízo e continuar são, porém esse não foi o seu caso, e o homicídio foi o culminar do seu crescente desequilíbrio. Aconteceu porque tinha de acontecer, não porque ele o quisesse. Tinha perdido o seu centro e a sua trajectória de vida tornara-se errante e destrutiva.

 

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Planeei muitas vezes o meu suicídio. Admirava os monges que se imolavam pelo fogo, em nome da paz, e sonhava protagonizar um acto semelhante, que chamasse a atenção do povo adormecido para a importância de viver com alegria o sonho de uma sociedade mais justa. Tinha perdido o juízo, é verdade, mas então como agora, acredito que ser são é nunca perder a capacidade de enlouquecer, o que, se pensarmos nisso, não é muito diferente de continuar a ser criança.

 

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Não me espanta que as pessoas enlouqueçam, espanta-me muito mais que tal não aconteça com mais frequência. Os loucos não estão todos nos manicómios, nem a loucura é sempre incapacitante. Pressenti, ainda muito novo, essa verdade, o que, ao mesmo tempo que me colocou à margem, me manteve integrado, um pé em cada um desses mundos. Talvez por isso compreenda o que aconteceu ao meu pai, ainda que tenha a certeza que tal nunca me acontecerá.

 

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Acreditar sempre foi para mim sinónimo de não duvidar, e, nesse sentido, não posso dizer que alguma vez tenha acreditado na revolução; no entanto, a verdade é que, se duvidei sempre da revolução, nunca deixei de acreditar nela.

A revolução foi o meu primeiro e único amor, e, tal como qualquer grande amor, tomou completamente conta de mim, alimentou-me e consumiu-me.

 

 

 

 

 

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Não acredito nem deixo de acreditar na possibilidade de um mundo melhor e mais justo; sei que ele é necessário e isso basta-me, ou talvez seja apenas isso em que acredito.

Tenho levado uma vida normal, igual à da maior parte das pessoas. Vivemos todos rodeados de muros, de acordo com regras que não escolhemos e nos são impostas, só que uns têm mais consciência desse facto do que outros.

 

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Quando me perguntam se estou arrependido, calo-me sempre. Poderia responder que não estou arrependido ou que me é impossível não estar arrependido. Tenho dificuldade em lamentar algo que já aconteceu. Talvez me fizesse mais sentido arrepender-me de algo que não fiz, porém não me parece muito diferente de arrepender-me de algo que fiz. Sem dúvida que cometemos erros óbvios na nossa vida e podemos em relação a eles sentir arrependimento, no entanto eu prefiro aceitar os meus erros e as suas consequências. O arrependimento parece-me uma negação e tento sempre evitá-lo.

 

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Sabia que tinha um pai, sabia que ele desconhecia a minha existência, e a verdade é que isso nunca foi um problema para mim. A minha mãe disse-me sempre, não sei ao certo desde quando, que o meu pai não sabia que eu existia, e, quando lhe perguntava porquê, ela respondia que nunca lhe dissera, que mal se conheciam.

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Tenho levado uma vida normal, uma vida determinada por outros, mas onde posso, apesar de tudo, ter uma palavra, e a greve é a minha forma de dizê-la. Conformei-me desde que fui preso. Conformei-me com a pena. Conformei-me com as regras que me impuseram. Talvez tenha sido a minha forma de me arrepender, de aceitar que errara. Seja como for, conformei-me, e, se apesar disso, não fui libertado ainda, é porque não me conformei com uma das coisas mais importantes que esperavam de mim: o desejo expresso de uma vida futura.

 

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Preparei com cuidado o encontro com o meu pai: li as notícias dos jornais, quer actuais quer antigas, li a sentença que o condenou e interroguei com vagar a minha mãe. Podia não ter feito nada disso, podia até não me ter encontrado com ele, no entanto fiz exactamente o contrário, aceitei encontrar-me com ele e preparei-me para esse encontro.

 

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Apesar de o meu filho ser já adulto, a verdade é que sou pai há muito pouco tempo e não sei o que pensar sobre isso.

 

 

 

 

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O meu filho falou-me com entusiasmo das manifestações contra a troika em que participou e, pela primeira vez, desejei estar lá fora com ele, desejei um futuro.

 

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A vida lá fora; uma expressão curiosa. A primeira vez que a ouvi senti-a como uma confirmação da minha morte, como se a vida só existisse lá fora; depois fui-me habituando a ouvi-la e deixei de lhe dar qualquer significado especial. A minha vida estava ali, a minha vida era apenas a minha vida.

 

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Amigos e conhecidos falam-me com frequência da vida lá fora, de como é melhor, de como eu devia aproveitar; escuto-os com atenção e continuo por cá, sem saber bem porquê, que é talvez uma forma de dizer que não me sinto incomodado o suficiente, ou simples expressão da minha teimosia.

 

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A revolução estava morta e eu agonizava; ou talvez fosse ao contrário. Os rituais que antes me traziam algum consolo, então apenas aumentavam a minha dor.

 

 

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Uma pequena frase, uma única palavra, é muitas vezes suficiente para dar início a um profundo processo de mudança; no entanto, quanto mais precisamos de a dizer, mais difícil se torna dizê-la. E se o silêncio pode ser tranquilizador, a minha experiência diz-me que a maior parte das vezes ele é opressivo, esmagador.

 

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Mesmo aqueles que apoiam a minha greve estranham que a faça agora, quando estou tão perto de sair da prisão. Acho que alguns até pensam que a verdadeira razão é que eu tenho medo de sair. É a primeira vez em todos estes anos que me manifesto, e isso também pode parecer estranho, no entanto esta foi a primeira vez que tive vontade de me manifestar, o que até pode não ser menos estranho, mas explica porque só o fiz agora.

 

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Fui condenado porque decidi matar e matei; no entanto, ainda que aceite que matei, nunca acreditei que tivesse decidido matar. Nunca decidi matar, o que não me impediu de admitir que matara e de decidir cumprir a respectiva pena. Porque ainda que a pena me tenha sido imposta, não é menos verdade que decidi cumpri-la, que decidi aceitá-la e nunca a pôr em causa.

 

 

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Não pretendo mudar o mundo com as minhas acções, as minhas acções já são elas próprias a mudança que desejo.

 

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Ao contrário das aves, que voam alto, mas cujas sombras nunca deixam o chão, nós, quando voamos, levamos sempre connosco as nossas sombras.

 

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Um sentimento que me visita com frequência é o sentimento, contraditório, de que é ainda demasiado cedo e, ao mesmo tempo, é já demasiado tarde. Os culpados para este meu sentir são os do costume, o medo e o desânimo, os dois velhos do Restelo que temos sempre de deixar para trás quando queremos seguir em frente.

 

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Somos sempre o centro do mundo, porém devemos ter cuidado para não fazer esse centro o centro da nossa vida; quando tal acontece é mais do que certo que perdemos o nosso centro.

 

 

 

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Quanto a revolução terminou, continuei-a por muitos anos por minha própria conta e risco. Nos anos que se seguiram, organizei muitos protestos em que era o único manifestante, e tornei-me conhecido, atraindo a continuada atenção de alguma imprensa sensacionalista. Foi numa dessas reportagens que afirmei, peremptório, que o PREC estava vivo, que o PREC era eu, ganhando assim a minha alcunha.

 

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A minha geração não viveu a ditadura, não conheceu a ameaça da guerra nem a promessa gritada da revolução. Há muitos que nos consideram órfãos e muitos que nos consideram meninos mimados, o que mostra o quanto nos desconhecem e o quanto desconhecem o país em que todos nós vivemos.

 

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A vida cá dentro não mudou muito ao longo dos anos. Pessoas entraram e pessoas saíram, no entanto as regras sofreram poucas alterações. É verdade que o mundo cá dentro responde ao mundo lá fora, mas não é mais do que uma sombra daquele.

 

 

 

 

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De tempos a tempo interrogavam-me sobre as minhas perspectivas de vida e eu respondia fazendo eco das suas perguntas. Quem é que o espera lá fora? Quem é que me espera lá fora? O que pensa fazer lá fora? O que penso eu fazer lá fora? Quais são os seus projectos. Quais são os meus projectos? E quando insistiam eu respondia que a minha vida era ali dentro e essa era a minha única perspectiva de vida. E se insistissem ainda, respondia que queria cumprir a minha pena até ao fim e só isso me preocupava. Depois disso calava-me e nada mais dizia.

 

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A sensação, peculiar, que me invadiu quando estive com o meu pai foi de que ele era livre: alcançara a liberdade, paradoxalmente, no momento em que decidira aceitar a sua pena e cumpri-la até ao fim.

 

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A revolução, tu é que a fazes, todos os dias.

 

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A partir de uma certa altura passaram a encomendar e a financiar as minhas intervenções; uma refeição aqui e outra ali, um ou outro pagamento em dinheiro. Fazia-o de forma isolada ou integrado em manifestações mais amplas. Levava os meus próprios cartazes, gritava as minhas próprias palavras de ordem e fazia a festa sozinho.

 

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Mexe-te, não fiques para trás, a revolução não espera por ti.

 

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A maior parte da minha acção política é realizada em grupo, mas também desenvolvo acções individuais isoladas.

 

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A liberdade tem muito mais a ver com aceitação do que com recusa. Tens sempre de te aceitar, ainda que rejeites tudo o resto.

 

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Revolta-te, sê tu próprio.

 

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Torna-te outra pessoa, mais próxima de ti próprio.

 

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Manifestei-me muitas vezes sozinho, e talvez nunca tenha estado tão próximo de mim mesmo como então, porém tal não impediu que me afastasse cada vez mais de mim próprio, tornando-me uma simples sombra de quem podia ter sido.

 

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Às vezes, a meio da noite, saio para pintar inscrições nas paredes e muros. Faço-o sozinho. Não quero que me liguem às frases que então escrevo. São frases comuns, ainda que criadas por mim, e o meu único propósito é que aquele que as lê as possa considerar suas.

 

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Quando comuniquei ao guarda que ia entrar em greve da fome, perguntou-me imediatamente porquê, e quando lhe expliquei a razão, abriu muito os olhos e riu, antes de me piscar o olho e inquirir o que queria para mim. Voltei a explicar-lhe e ele voltou a perguntar-me o que queria para mim. O ritual repetiu-se quando fui levado ao chefe dos guardas e depois ao director. Pareciam não serem capazes de acreditar que eu estava a falar a sério.

 

 

 

 

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Se há algo de que tenho sentido falta todos este anos é das árvores, de as olhar agitadas pelo vento, de me deitar à sua sombra. Por outro lado, a recordação das árvores, tal como as recordações do tempo da revolução de Abril, surge-me sempre como um lugar de refúgio.

 

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Tenho amigos, tenho familiares, tenho o meu amor e os meus filhos. É isto que sou, e poderia talvez sê-lo em qualquer outro lugar, em qualquer outro país.

 

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Nunca estive num colégio, não fui à tropa e nunca estive preso ou internado; e ele também nunca estivera, todavia conformou-se com facilidade, porque queria conformar-se, não numa atitude de submissão, mas como afirmação, como resultado da sua vontade. Não queria obter qualquer vantagem ou privilégio, queria apenas conformar-se, e isso conferiu-lhe uma honestidade e uma verdade que não é comum, na prisão ou fora dela.

 

 

 

 

 

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Ao longo destes anos, muitas pessoas me quiseram visitar, desde os meus familiares mais próximos até a inúmeros jornalistas, e eu recusei sempre. Os meus pais faleceram entretanto e eu não pedi para ir ao funeral.

 

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Tinha um pai, ainda que não soubesse quem era, e isso sempre foi suficiente para mim. A minha mãe disse-me sempre que o meu pai não sabia que o era, e quando eu perguntava porquê, respondia que não lhe dissera, e quando lhe perguntava porquê, respondia-me que ele já tinha problemas de sobra. Ter um pai e não o ter afinal nunca foi um problema para mim. Os meus amigos tinham pais aborrecidos e desagradáveis, e o meu pai não era nada disso ou, se até era, eu não tinha de o aturar. No fundo, acho que lhe preservei, senão uma imagem positiva, pelo menos uma imagem imaculada.

 

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Não faço contas à vida, nunca fiz; limito-me a viver.

 

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Não costumo interrogar-me sobre como poderia ter sido a minha vida se tivesse agido de outra forma ou se as circunstâncias tivessem sido diferentes. Se soubesse que tinha um filho talvez a minha vida tivesse sido diferente, porém eu continuaria preso e em vez de estar apenas cá dentro, como sempre estive, teria um pé cá dentro e outro lá fora, o que, para não dizer mais, seria sem dúvida um exercício penoso.

 

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Cheguei à acção política por influência de um amigo, que me convidou para participar numa manifestação contra o estado da educação em Portugal; amigo que, por sua vez, tinha sido influenciado pelo pai, activista político há muitos anos. Se esta visão parece simples, a aparente relação de causa e efeito que pressupõe é manifestamente obscura, desde logo porque perante uma possível influência existem sempre duas possibilidades de resposta, podemos aceitar ou negar a influência. Assim, perante um pai de esquerda, o filho pode, por aceitação ou oposição dessa influência, tornar-se de esquerda ou de direita.

 

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Não sinto qualquer nostalgia. Nunca vivi verdadeiramente no passado. Houve até um tempo em que vivi no futuro. Há muito que vivo apenas no presente.

 

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Perante a censura, o atraso e a mais pura cegueira que manchavam o tempo antes do 25 de Abril, confesso que não percebo, nem nunca percebi, como se poderia deixar de ser revolucionário, estar contra tudo que fizesse lembrar, ainda que de forma vaga, o anterior estado das coisas. No entanto a vida é feita de contradição, e cedo comecei a perceber, que não só muitos pensavam de outra maneira, mas também que muitos que se diziam revolucionários eram afinal profundamente conservadores nos seus processos e modos de pensar.

 

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Se tivesse de escolher o facto mais marcante da minha vida, de entre ter vivido a revolução e o ter sido preso, e assim continuar há mais de duas décadas, ainda digo que não hesitaria nem por um instante e escolheria o primeiro dos dois.

 

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A revolução estava morta e enterrada, e pouco me perturbou, ao longo dos anos, vê-la cada vez mais soterrada sob sucessivas humilhações e múltiplos esquecimentos, porém, quando o pior primeiro-ministro depois do 25 de Abril se tornou o pior presidente da República depois do 25 de Abril, apadrinhando o mais incompetente e alienado governo de sempre, não consegui mais ficar indiferente.

 

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Sempre me confundiram as pessoas que se revêem em antepassados aristocráticos, invocando linhas genealógicas na maior parte das vezes duvidosas; no entanto, afirmei-me várias vezes, por jactância e mera provocação, filho de um perigoso anarquista, preso por não se ter conformado com a anunciada morte da revolução e ter tomado o assunto nas suas próprias mãos.

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Não me preocupa muito o porquê das coisas, preocupa-me muito mais as coisas como elas são, e tentar alterá-las sempre que considerar que tal se mostra necessário.

 

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O que está feito está feito. O que aconteceu aconteceu. Nunca procurei razões para os meus actos, parecem-me muito mais desculpas do que outra coisa qualquer. Poderia dizer que saí de casa porque os meus pais eram autoritários e queriam para mim uma vida que eu não queria viver, todavia, prefiro dizer que saí de casa dos meus pais para viver a minha própria vida. Poderia dizer que nunca me juntei a qualquer força partidária porque em todas elas descobri prepotência e intriga, porém, prefiro dizer que quis apenas seguir o meu próprio caminho. Poderia dizer que nunca quis matar, no entanto matei, por muitas razões que possa invocar em minha defesa.

 

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Num país envergonhado e sombrio, o 25 de Abril foi uma explosão de alegria. Nunca me senti tão liberto, nunca mais me senti tão feliz, a não ser quando ainda hoje o recordo, ainda que essa felicidade me surja, cada vez mais, obscurecida por um enorme desalento e por uma enorme tristeza.

 

 

 

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Sempre que me refiro ao 25 de Abril, falo daquela coisa dos cravos, expressão que virou verso de um poema autobiográfico de um grande amigo; da mesma forma que, quando falo dos meu melhores amigos, os apelido sempre, com carinho e admiração, de grandes parvalhões.

 

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Nunca dei grande valor aos meus sonhos, são sempre vulgares e enfadonhos, todavia o sonho de Abril, sonho colectivo, sonho que sonhei acordado, foi o que de mais importante me aconteceu, e se para sempre me libertou, também para sempre me aprisionou.

 

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Estou aqui porque quero e sempre afirmei que ia cumprir a minha pena até ao fim, atitude que, se nunca me trouxe inimigos, também não me ajudou muito. Os outros presos querem sempre sair o mais cedo possível e nenhum sabe, ou parece perceber, porque está aqui.

 

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As minhas acções revolucionárias nunca obedeceram a qualquer plano ou estratégia; limitavam-se a acontecer-me. Sempre fui ingénuo e pouco reflexivo, e nunca gostei de contrariar a minha natureza. No princípio limitava-me a fazer cartazes e a ir para a rua gritar palavras de ordem, que era o mesmo que faziam todos aqueles que protestavam. O facto de habitualmente me manifestar sozinho e criar as minhas próprias palavras de ordem distinguia-me dos outros, mas eu não dava qualquer importância a esse facto.

 

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Fui surpreendido, completamente por acaso, com a referência ao meu pai num obscuro opúsculo sobre a história da performance em Portugal. A referência era breve, mas ressumava admiração e respeito, descrevendo o meu pai como uns dos artistas mais originais da cena portuguesa de sempre. A preocupação pelo corpo como forma de protesto e a linha continuamente traçada entre o sonho individual e o sonho colectivo eram apontados como os seus temas mais intrigantes e coerentes. A sua arte era descrita como ingénua, porém desafiadora e profunda.

 

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Na altura eu pintava grandes faixas brancas com breves palavras de ordem e esticava-as na rua de forma a poder circular entre elas completamente nu. Era divertido e eu sentia-me feliz. Naquele dia, ao sair, agarrei, sem perceber, as faixas que estavam por pintar e levei-as comigo. Só quando cheguei ao local escolhido é que me apercebi do sucedido, e, sem saber o que fazer, estendi as faixas na mesma. Ocorreu-me então que devia fingir que gritava palavras de ordem, e assim fiz, completamente em silêncio, para espanto dos que passavam. Diverti-me imenso e senti-me imensamente feliz. Muitas pessoas sorriam.

 

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Uma das suas performances consistiu em, ao longo de uma semana, coincidindo com o horário de emissão de uma telenovela em voga, colocar-se à porta dos estúdios da televisão com um cartaz que declarava em caixa alta que a revolução não passava na televisão. Como se a realidade lhe quisesse dar razão, o seu protesto não passou na televisão e poucos foram os que o presenciaram ou dele tiveram conhecimento.

 

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Há regras em todo o lado e aqui não é diferente, apenas a malha é mais apertada, porém, também aqui, nos podemos desviar delas ou tão só quebrá-las. Claro que a protecção também é maior, para os desfavorecidos, o que me ensinou que o mais importante é sempre o ponto de vista.

 

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Quando soube que estava marcada uma enorme manifestação aberta contra o governo, disse a mim mesmo que tinha de ir. Não pensei, como percebo agora que nunca penso, nas consequências possíveis da minha pretensão.

 

 

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Acredito que somos nós próprios o maior obstáculo para conseguir o que queremos. É claro que existem condicionalismos externos e internos; alguns sem dúvida inultrapassáveis em muitas ocasiões; porém, não acreditarmos na possibilidade de concretização dos nossos desejos é sempre o maior dos obstáculos. Lembro-me muitas vezes daquela frase de duvidosa autoria que diz que alguém não sabia que algo era impossível e por isso fê-lo.

 

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Quando penso duas ou três vezes antes de falar, convenço-me que se o fizesse sempre, a maior parte das vezes ficaria calado e nas restantes diria muito menos.

 

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Durante muitos anos perguntaram-lhe com insistência porque não demonstrava vontade em sair, até que ficou claro que ele não tomaria qualquer iniciativa nesse sentido e aceitaram afinal esse facto. Entre os que ali estavam por motivos profissionais e os que estavam porque obrigados, ele surgia à parte, limitando-se a estar ali, como se aquele fosse o seu lugar. Quase já não davam por ele e nada fazia para ser notado, até ao dia em que requereu, mais de duas décadas depois de ter entrado, a sua primeira saída.

 

 

 

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O meu pai calava-se muito, dizia que se falasse não se poderia ouvir a si próprio nem aos outros. Também me calo muito, mas acredito que é preciso falar para poder ouvir os outros e a nós próprios.

 

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A maior parte do tempo representamos um papel, imposto pelos outros ou por nós mesmos, porém sempre um papel, uma prisão, apenas pressentida, todavia não menos real.

 

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Ele não antecipou, nem por um momento, as reacções que o seu pedido ia provocar, nem alguma vez tentou percebê-las. Parecia-lhe tão razoável nunca ter pedido antes uma saída, como lhe parecia razoável tê-la pedido agora com a justificação apresentada.

 

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Primeiro estiveram todos de acordo que ele estava a brincar, mesmo aqueles que sempre o tinham considerado demasiado sério. Depois ficaram todos de acordo que ele enlouquecera, mesmo aqueles que sempre o tinham considerado louco. Finalmente passaram a ignorá-lo, até que tudo começou de novo.

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As saídas integram-se num plano mais geral que visa a reinserção social do recluso, constituindo uma etapa da preparação para a vida em liberdade. Pretende-se dessa forma criar ou reforçar laços familiares, proporcionar contactos directos com possíveis entidades laborais, ou apenas aliviar o peso da reclusão e o inevitável afastamento da realidade. O pedido dele, tal como o apresentou, não se enquadrava em nenhuma dessas situações e, tendo em atenção o motivo explicitado, nunca seria deferido.

 

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Riram-se todos muito com o meu pedido e no início ainda me tentaram convencer a alterá-lo, dizendo-me que se eu queria sair não era dessa forma que o conseguiria. E quando eu respondia que estava a dizer a verdade, então ficavam de repente sérios, convencidos que eu estava a gozá-los ou tinha enlouquecido. Seja como for, não mudei de opinião e mantive o meu pedido tal como estava. Sabia que tinha razão e, pela primeira vez desde que estava preso, comecei a pensar em lutar por aquilo que acreditava. Na verdade, nunca antes precisara fazê-lo, há muito que deixara de acreditar.

 

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Estava a fazer cartazes para a manifestação e as palavras de ordem do costume repetiam-se. Cansado da monótona sucessão de tantos e gritantes “O GOVERNO PARA A RUA”, “A TROIKA FORA DAQUI”, “GATUNOS”, escrevi num cartaz “AMA COMO A ESTRADA COMEÇA”. Logo alguém me perguntou o que queria aquilo dizer e, como eu não respondesse, outras vozes se lhe juntaram, insistindo numa resposta. Perguntei-lhes como começava a estrada e, depois de alguma hesitação, um deles respondeu-me a medo que começava pelo princípio, e outro disse que começava sem saber onde ia. Disse-lhes que era isso mesmo e olharam-me desconfiados. Expliquei-lhes que era um verso único, um poema do poeta e pintor Mário Cesariny, e podia querer dizer que devemos amar desde o princípio ou que devemos amar sem nos interrogarmos onde esse amor nos pode levar. Sorriram e desinteressaram-se. Ainda acrescentei que o primeiro verbo designava uma emoção enquanto o segundo verbo designava uma acção, mas depois calei-me. Um amigo que me olhava espantado, escreveu o seu próprio cartaz e entregou-me: ”REVOLTA-TE COMO A CHUVA CAI”.

 

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Sou casado, tenho dois filhos, trabalho e dedico-me à revolução, factos que em si mesmos me parecem vulgares, porém raros são os meus amigos e colegas que os partilham no seu conjunto.

 

 

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Quase tudo na vida é uma questão de paciência, e não o digo como apologia ou defesa do conformismo ou da submissão, antes pelo contrário, falo da paciência das árvores que crescem em condições adversas, da paciência do rio que teima em juntar-se ao mar, da paciência que é preciso para fazer o que é preciso fazer.

 

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A maior parte dos meus amigos não estão onde querem estar, mas há alguns, muito poucos, que estão onde escolheram estar e eu tento fazer parte desse grupo, ainda que às vezes me interrogue se estou onde escolhi estar ou apenas escolhi estar onde já estava.

 

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A primeira manifestação em que participei, éramos meia dúzia de líricos, malta da minha idade, quase todos precários ou desempregados. Quase não tínhamos energia para gritar as palavras de ordem. Uma hora foi quanto durou o protesto, depois cada um foi à sua vida. Senti-me tão perdido que só cheguei a casa no dia seguinte, porém, na próxima manifestação estava lá outra vez.

 

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É por acaso ou por inevitabilidade que se está preso e nunca por escolha, ainda que alguns, o que tem vindo a acontecer com cada vez mais frequência, afirmem que estão cá dentro como alternativa à vida lá fora, cada vez mais difícil de viver. Não sei se acredito. É verdade que ao longo destes anos conheci muitas pessoas que preferiam estar presos, no entanto acho que tal se devia a terem medo de viver lá fora, mais do que a terem vontade de viver cá dentro. Alguns dos que vi retornar à cadeia, comparo-os aos que regressam a casa dos pais com o rabo entre as pernas depois de uma experiência mal sucedida de autonomia. Eu não estou aqui porque escolhi estar, ainda que tenha escolhido aceitar a pena em que fui condenado.

 

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É ridículo agir sem pensar, mas ainda é mais ridículo pensar sem agir.

 

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Alguns dizem que não vale a pena sair para a rua porque ninguém nos ouve; mas nós fazemo-nos ouvir e ouvimo-nos uns aos outros, e isso é importante. É uma voz colectiva, que toma consciência de si e que ganha cada vez mais força.

 

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A revolução foi o único verdadeiro amor da minha vida e, perdido esse amor, morri e deixei de ser.

 

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Dizem que as manifestações de rua não servem para nada, mas se para nada mais servissem, sempre se pode dizer que servem para reforçar as convicções daqueles que nelas participam.

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Fazer algo extraordinário não é tão difícil como muitos pensam e, por outro lado, é cada vez mais necessário que o façamos. Juntar quase um milhão de pessoas em quarenta cidades a gritar “QUE SE LIXE A TROIKA! QUEREMOS A NOSSA VIDA” é sem dúvida extraordinário, mas não deixa de ser o vulgar somatório de pequenos gestos individuais que por si só quase pareceriam ordinários.

 

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Fui um militante partidário, mas a minha actividade política nunca se resumiu ao partido. Acredito que as diferenças não devem afastar-nos daqueles que a nós se assemelham no seu sentir e no seu pensar.

 

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No início, o núcleo fundador surgiu como um conjunto de pessoas sem militância partidária, mas com uma clara prática política; mais tarde como um grupo ocupado na sua maioria por militantes do PCP e do Bloco de Esquerda. Todavia, mais importante do que esse retrato seria perceber o que levou tantas pessoas a sair à rua e responder a um apelo que parecia menor do que as suas ambições. Inquiridos vários membros desse núcleo fundador sobre os seus anseios e aspirações, obtiveram-se respostas muito diferentes, e o mesmo aconteceria sem dúvida se tivessem perguntado ao povo que veio para a rua, pessoas que queriam a sua vida de volta, queriam de volta os seus sonhos possíveis, a antiga ilusão de domínio de si próprios.

 

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Participei na manifestação com a minha mulher e os meus filhos, e vi muitas famílias na rua, algumas de avós a netos, todos eles indignados, porém felizes. O povo estava na rua e dizia com clareza que era o povo quem mais ordenava.

 

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Quando percebi que o meu pedido de saída não seria aprovado, desisti. Não podia ir à manifestação, pois não iria, mas iria fazer o meu próprio protesto.

 

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A fuga em frente, se assim posso descrever a atitude do meu pai, talvez seja afinal uma das características mais marcantes da sua personalidade. Impedido de sair para participar na manifestação, como tinha pedido, aumentou a parada, passou a exigir a demissão do governo e anunciou ir entrar em greve da fome.

 

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O que aconteceu existe agora apenas como memória e como narrativa, e fica sempre a faltar alguma coisa, por mais coisas que sejam acrescentadas.

 

 

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Uma das minhas acções preferidas consistia em repetir durante horas, até à exaustão, uma mesma palavra de ordem, testando os limites quer da mensagem quer da minha energia. Repetia várias vezes a mesma frase até não poder mais, e depois recomeçava.

 

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Gosto de gestos simples, repetidos, ritualizados. Às vezes canso-me, porém nunca me esqueço que inspiramos e expiramos a cada momento e que o coração bate sempre a compasso.

 

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O sofrimento é parte integrante da vida, quer seja entendido como puro heroísmo ou aceitação mais ou menos resignada.

 

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A minha nova atitude fez-me sentir e estar mais só do que alguma vez senti ou estive. Pela primeira vez desde que fui preso, experimento a verdadeira solidão e sinto-me mais próximo da vida lá fora.

 

 

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Ele tinha anunciado que ia entrar em greve da fome e eu não duvidei nem por um momento que o fosse fazer. Um dos traços do seu carácter era sem dúvida um gosto exagerado pelo dramático. A minha mãe conhecia-o bem, apesar do pouco tempo que passaram juntos, e não perdeu tempo a pedir-me que o fosse ver. Não poderia ter-lhe recusado o seu pedido, mas fui vê-lo porque quis.

 

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Era estranho que ele tivesse mudado de atitude assim de repente, todavia ainda mais estranho era que tivesse saído da sua letargia de décadas para levar a cabo uma acção que não tinha um propósito realizável. Dificilmente alguém podia esperar que a sua greve da fome levasse à queda do governo, ainda que muitos esperassem há muito que tal acontecesse a qualquer momento.

 

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Curiosamente, foi quando estava a ponderar seriamente sair do país que me convidaram a participar no lançamento do movimento. Suspensa a minha militância política, sentia-me tentado em experimentar a vida lá fora, mas o convite afastou mais uma vez essa possibilidade. E pouco tempo depois a minha mãe contou-me do meu pai.

 

 

 

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A greve da fome levou-o de novo às páginas dos jornais e aos ecrãs de televisão. No geral, o tratamento foi o dado a um facto insólito, que só por esse motivo deve ser alvo de atenção, como o célebre caso do homem que mordeu o cão. Ainda assim, chamou a atenção para ele e despertou mesmo a simpatia de alguns, tendo-se mesmo formado um grupo que apelava à sua libertação, o que ele nunca tinha pedido.

 

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O último conjunto das suas acções políticas orientara-se pela denúncia pública de pessoas com ligações fortes ao antigo regime ou contrários ao desenvolvimento da revolução, o que incluía de antigos funcionários da polícia política a latifundiários reaccionários. Escolhido o alvo, e armado de cartazes apropriados, colocava-se à porta de casa dos seus alvos, à porta dos seu empregos ou de onde quer que estivessem, gritando bem alto a sua denúncia e seguindo-os sempre que saíam à rua.

 

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Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma, e eu gosto de acrescentar, desde que queiramos ir e o tempo seja suficiente. Seja como for, e eu sei que é um lugar-comum, o importante é estar a caminho.

 

 

 

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Faço o que sou, faço sempre o que sou até deixar de o ser, e depois volto a fazer o que sou. Ser quem se é deveria ser fácil e inevitável, eu faço o possível para que assim seja.

 

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Há sem dúvida uma grande diferença entre pedir a demissão do governo e acompanhar esse pedido de uma greve da fome, acrescentando-lhe assim firmeza e determinação. O que não interessa, ao contrário do que muitos parecem pensar, é se essa greve é feita dentro ou fora da prisão.

 

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Na altura eu estava cheio de ódio, e tudo o que fazia reflectia esse ódio. O amor que antes me animava e que sempre colocara nas minhas acções estava esgotado, e só o ódio as alimentava agora. Estava só e o único sentimento que me ligava ainda ao mundo era o ódio que me consumia e a que eu obedecia cegamente.

 

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Não quis matá-lo, não planeei matá-lo, no entanto matei-o, o meu ódio matou-o, num desfecho que não procurei mas que me encontrou com facilidade. Aceitei a pena em que fui condenado, e cumpri-la até ao fim foi a única forma de redenção que encontrei e não estou arrependido. Apesar de o meu advogado ter insistido que um recurso teria diminuído ou mesmo anulado a pena, nunca aceitei que o interpusesse.

 

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É sempre mais fácil estar contra do que a favor. Eu gosto de estar a favor, ainda que tal implique estar contra alguma coisa. Amar é estar a favor, podia ser o meu lema, se tivesse algum.

 

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A minha mulher é alemã e já falámos várias vezes em ir viver para a Alemanha. Gostamos os dois de Portugal, mas a vida cá dentro tem-se tornado cada vez mais difícil.

 

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Às vezes sinto-me só, o que me incomoda, até me lembrar de que habitualmente me sinto muito melhor assim.

 

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Pergunto-me cada vez mais se continuo em Portugal porque quero estar aqui ou apenas o faço por teimosia tacanha. A verdade é que sempre me senti humano antes me sentir português, e a continuar aqui talvez passe em pouco tempo a odiar ainda mais a minha condição de português.

 

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Às vezes sinto que vivo entre parênteses que me contêm numa existência insignificante, isolando-me da verdadeira vida. E o que me perturba mais é sentir que sou eu que ergo esses parênteses em que me encerro.

 

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Disse, sem alterar a sua expressão distante, quase por acaso: “Gostei de estar contigo, gostei muito”. E eu disse, quase num murmúrio: “Eu também gostei, gostei muito”.

 

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Sou uma daquelas pessoas que acreditam que duas linhas paralelas se podem encontrar. Acredito na capacidade de imaginar e não gosto de excluir hipóteses, por menos plausíveis que sejam, sobretudo quando me fazem sentido.

 

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Dizem-me que já tenho idade para ter juízo e isso faz-me sempre sorrir. Na vida, todas as vezes que me disseram para ter juízo, foi sempre quando estava mais seriamente determinado a tê-lo.

 

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Não acredito em segundas oportunidades, acredito apenas em agir sempre no maior respeito de nós próprios e dos outros. Na maior parte das vezes nem uma primeira oportunidade temos, quanto mais uma segunda.

 

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Um guarda disse-me que eu estava a ser duplamente parvo ao fazer greve e fez questão em explicar-me porquê. Em primeiro lugar, era parvo porque estava a fazer greve por um motivo impossível. Melhor seria que pedisse algo de que pudesse beneficiar. Em segundo lugar, era parvo porque o tempo que me faltava cumprir iria quase coincidir com a duração da greve. Ninguém se preocuparia com o que pudesse acontecer-me.

 

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Já experimentei relances de verdade essenciais, mas tão de repente como surgiram assim desapareceram, deixando-me de novo cego e aturdido, e no entanto sei que essas verdades existem e poderiam guiar a minha vida.

 

 

 

 

 

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As minhas acções tornaram-se cada vez mais perigosas. Fui insultado, agredido e ameaçado de morte, porém, em vez de considerar desistir, senti-me ainda mais motivado a continuar.

 

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Aconselharam-me a ter cuidado, a parar, mas o único risco que eu vejo é para mim próprio, e esse risco eu estou mais do que disposto a correr. Sei muito bem o que estou a fazer, tenho os olhos bem abertos e vejo com clareza.

 

*

Tal pai, tal filho; esse era o título do artigo que comparava o meu pai a mim, comparação que não enjeito, ainda que ache as conclusões despropositadas. Nada que o mau jornalismo que grassa em Portugal não me tenha já habituado; em regra dá-me vontade de vomitar, mas às vezes também me faz rir.

 

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O meu pai recusava-se a falar com jornalistas, e quando estes souberam da minha existência, começaram a contactar-me e a tentar entrevistar-me. Cheguei a ameaçar um ou dois de lhes ir às trombas se insistissem. Atitude semelhante à que tive com alguns correligionários que me contactaram com fins semelhantes.

 

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Gosto de dar as minhas opiniões, mesmo que não me tenham sido pedidas, porém, ainda que não concorde com os outros, respeito a sua liberdade de tomarem as suas próprias decisões, desde que vivam com as suas consequências.

 

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Quando o tempo chegou ao fim, levantámo-nos e ficámos um em frente ao outro, ao lado da pequena mesa de tampo de fórmica quadrangular. Perguntei-lhe se queria voltar a ver-me. Sorriu e abraçou-me em silêncio.

 

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O que é importante é o que pensas, o que te preocupa; é isso que nos liga uns aos outros. É totalmente indiferente como te chamas, de onde és ou qual é a tua idade.

 

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Insistir num erro não com que o erro deixe de o ser, aliás, a pior forma de errar é insistir num erro, porque corremos o sério risco de deixar de o percebermos como um erro e continuar assim a errar.

 

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A sentença sublinhava que o arguido relatara os factos de forma distante e fria, sem grande emoção. Destacava ainda que o arguido agira determinado e motivado por claro ódio político. Ainda que nunca tenha feito qualquer declaração nesse sentido, o historial de acções políticas do arguido, designadas como agressivas e provocatórias, convenceu o tribunal, para além de qualquer dúvida, da natureza agravada do homicídio.

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O caminho é estreito e é necessário percorrê-lo sozinho; no entanto, nós nunca estamos sós, e umas vezes o caminho alarga tanto que o perdemos, enquanto outras estreita tanto que somos incapazes de avançar.

 

*

 

No início soube apenas que ele estava a cumprir uma longa pena de prisão por um homicídio cometido em nome da revolução, e isso interessou-me, interessou-me bastante. Depois, pouco a pouco, fui sabendo outras coisas, que tinha um filho adulto, facto que até há pouco tempo desconhecia por completo, que vivera o 25 de Abril e se embriagara com o sonho de uma revolução, e senti cada vez mais a necessidade de dizer alguma coisa. Sentia que tinha tanto para dizer que percebi logo que me ia ser bastante difícil dizê-lo, mesmo quase impossível. Nunca vos aconteceu terem descoberto algo tão surpreendente que sabem que nunca conseguirão dizê-lo? Tenho sempre medo de dizer de menos e tenho sempre ainda mais medo de dizer de mais, porém às vezes é mesmo preciso correr riscos e dizê-lo, ou nunca o diremos. Se o disser a minha parte fica cumprida, restará que o ouça quem o quiser ouvir.

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Para dizer, é preciso aprender a ouvir. Se não soubermos ouvir, pouco ou nada seremos capazes de dizer.

 

*

 

Posso não saber o que quero, porém, sei muito bem o que não quero.

 

*

 

            Por que faço o que faço? Porque acredito que o devo fazer. Por que acredito? Porque sou assim. Por que sou assim? Sei lá porque sou assim. Nem para tudo existem respostas.

 

*

 

Não me interessa nem nunca me interessou discutir as circunstâncias da morte do meu pai. Fui convidado para participar em diversas iniciativas e recusei todos os convites. A tristeza que tomou conta de mim por causa da sua morte é muito inferior à alegria que trouxe à minha vida o facto de o ter conhecido.

 

 

 

 

*

 

Depois de alguns dias de preparação dirigi-me sozinho à prisão onde o meu pai estivera preso e estendi à volta dos muros uma longa faixa onde se repetia uma única frase: “O PREC ESTÁ VIVO”.

 

*

 

Não sei por que faço o que faço, sei apenas que tenho de o fazer, e isso é tudo o que preciso de saber. Não sou pessoa dada à reflexão, nunca fui, esforço-me apenas para que aquilo que faço reflicta aquilo que sou, aquilo que desejo. Estamos sempre em viagem, e todas as acções, mesmo as mais insignificantes, são importantes, porque, sem que nos apercebamos, podem mudar o nosso rumo, podem mudar a nossa vida. E ainda que no início, o novo rumo nos passe despercebido, a uma certa altura torna-se claro que ele vai mudar a nossa vida, se deixarmos que tal aconteça, se formos capazes de fazer que tal aconteça.

 

 

 


 

 

 

 

 

FECHAR PARÊNTESES

 


A revolução de Abril

 

 

 

Não sabia o que se estava a passar, porém não tinha dúvidas que tudo estava diferente e a cor irrompia num dia a dia antes a preto e branco. Era como se a realidade antes única explodisse agora em milhares de possibilidades, como as fotografias a preto e branco que o pai coloria com suaves pinceladas.

As pessoas tinham saído às ruas, conversavam umas com as outras, abraçavam-se, riam e choravam. Tinham acordado de um longo sono, estavam ainda estremunhados, confusos, irritados, mas felizes.

Foi assim que ele viveu aqueles dias e é assim que ainda hoje os recorda, como um sonho que sonhou acordado. Apaixonou-se por esse novo mundo em que tudo parecia possível e estava nas suas mãos, nas mãos de todos.

 

 


O julgamento

 

 

 

No dia do julgamento levaram-no algemado, o que era procedimento habitual, da carrinha ao tribunal, onde entrou por uma pequena porta lateral, e daí para a sala de audiências, evitando alguma imprensa que ali pudesse estar. Ele fez todo o percurso de cabeça baixa, não porque estivesse envergonhado, mas porque estava cansado, muito cansado.

O juiz perguntou-lhe o nome e se já tinha estado preso e ele respondeu, sentindo que era outro que não ele que respondia. Esta sensação estranha foi-se acentuando ao ponto de sentir-se completamente de fora, como se estivesse a assistir ao julgamento de outra pessoa. Sabia que essa pessoa era ele, porém via-se e ouvia-se como se fosse outro. Não lutou para afastar essa sensação, estava cansado, muito cansado, e o outro que era e não era ele lá ia respondendo ao juiz, de forma pausada numa voz sem expressão.

Passeou-se pela sala, olhou de perto os juízes, os advogados, o delegado do Ministério Público, espreitou-lhes os gestos e os apontamentos. Ninguém dava conta dele, estavam todos a tomar atenção ao outro que era e não era ele, ao monstro movido a ódio que no entanto parecia calmo, muito calmo, demasiado calmo. Olhou também para o homem que continuava a responder ao juiz, o rosto inexpressivo, a voz arrastando-se num ranger de velho portão metálico, e teve dificuldade em se reconhecer. O homem estava vestido com um fato de má qualidade, o colarinho da camisa asfixiava-o, a gravata descolorida estava amarrotada. Aproximou-se dele e perguntou-lhe como se chamava. O outro virou-se para ele, olhou-o nos olhos, e disse numa voz fraca: “Aureliano José Torres Salgado”.

“E já alguma vez foi condenado ou esteve preso?”

“Não.”

As perguntas eram respondidas a custo, quase sempre com monossílabos, e várias vezes foi preciso insistir para que ele finalmente respondesse.

Estava decidido a não se defender e tinha mesmo ponderado prescindir da palavra após as perguntas relacionadas com a sua identidade e passado criminal. Por isso se calava cada vez mais, ao ponto de exasperar o juiz.

“Mas porque não te defendes?”, perguntou-lhe e ele respondeu com um esboço de sorriso no rosto inexpressivo:

“Tu sabes muito bem porque não me defendo.”

“Aureliano José”, disse-lhe no mesmo tom que a sua mãe usava, “tu não brinques comigo e responde ao que te perguntei.”

Aureliano Salgado abriu um pouco os olhos, num esgar de míope, e pareceu ir calar-se, mas disse numa voz cansada: “Matei-o, essa é a verdade, porque haveria de me defender?”

“Mas existem circunstâncias atenuantes; há todo um quadro externo que diminui a intensidade da culpa, e você mesmo admitiu que não planeou matá-lo”, diz o jovem advogado oficioso, agarrando a cabeça grande com ambas as mãos num claro gesto de desânimo.

“Matei-o, não matei? E não foi por acaso. Sabia o que estava a fazer”, diz Aureliano Salgado numa voz clara, marcando cada palavra como se recitasse um mau poema.

“Aureliano José, não te entregues, defende-te, não te cales, tu não és um criminoso”, diz, e quase lhe toca, a mão estendida na sua direcção, como se a fosse apoiar no ombro do outro.

Aureliano parece calmo, muito calmo, demasiado calmo, está só à espera que tudo acabe para poder voltar à prisão. Está cansado, muito cansado, e só quer que tudo acabe de vez.

O juiz insiste na mesma pergunta não respondida, e Aureliano responde que sim, sem dúvida, ele quer que tudo acabe depressa.

 


Dia de visitas

 

 

Quando chegou à porta do estabelecimento prisional já ali se encontravam muitas pessoas à espera. Confirmou que ainda não eram horas de entrar, faltava ainda meia hora, e foi ocupar o seu lugar na fila. A maior parte eram mulheres, novas e velhas, existindo bastantes indivíduos negros e de etnia cigana. Todos tinham consigo sacos normalizados de onde espreitavam produtos alimentares e de higiene.

As paredes altas que exibiam uma brancura de folha de papel chamaram-lhe a atenção e distraiu-se a cobri-las com imaginárias e duvidosas palavras de ordem. “Longe da vista, longe da democracia?” “Estou preso do teu olhar.” “De más intenções está a prisão cheia.” “Os presos também são pessoas.” “A chave da prisão é a revolução.” Sorria, quando ouviu o seu nome e reconheceu de imediato a voz que o chamava.

“Então que fazes aqui?”, perguntou-lhe um jovem que acabara de chegar. Abraçaram-se.

“Já não te via há tanto tempo, que é feito de ti?”

“Estou a trabalhar na Suíça. Está quase a fazer um ano”, olharam-se em silêncio.

“Mas que fazes tu aqui?”, insistiu com uma voz rouca onde se detectava já um ligeiro sotaque estrangeiro.

“Vim ver o meu pai”, as palavras saíram-lhe em atropelo.

“Vieste ver quem?”, disse o outro, os olhos muito abertos a revelarem uma admiração sincera.

Artur Falcão olhou-o com um sorriso quase imperceptível no rosto sério. “Vim ver o meu pai”, repetiu, “tal como Jesus Cristo também eu tenho um pai, só que é um deus com pés de barro.”

David Matos observou-o com descrença, as sobrancelhas franzidas; pareceu ir questioná-lo de novo mas depois mudou de ideia, soltou um agora afirmativo “Vieste ver o teu pai” e ficou à espera que Artur dissesse mais alguma coisa.

“É uma longa história, mesmo muito longa, e por mais que quisesse não seria capaz de a contar em poucas palavras; mas deixa-me antes perguntar o que fazes tu aqui. Ou ias só a passar?”

David passou de surpreso a triste, o seu rosto era particularmente expressivo e qualquer um podia ler com facilidade o seu estado emocional.

“O meu irmão está preso.”

“O quê”, e foi a vez de Artur parecer sinceramente admirado, “O teu irmão? Deves estar a brincar.”

“Antes estivesse”, disse, e repetiu, “Antes estivesse.”

Artur lembrava-se bem de Paulo, o único irmão de David, um verdadeiro modelo de virtudes. Três anos mais velho do que ele, não fumava, não bebia, era disciplinado e organizado, e nunca lhe conhecera qualquer comportamento que, de longe ou de perto, apontasse para a prática de qualquer crime, por menor que fosse.

“Mas o que lhe aconteceu?” perguntou Artur.

“É a vida”, disse o outro, “deu-lhe para o torto.”

Artur olhou David em silêncio. Não o quer pressionar, afinal também ele não contou nada sobre o seu pai, mas David continua a falar.

“Estava tudo a correr bem. Tinha-se metido no negócio do peixe congelado, importava e exportava, e ia tudo de vento em popa. Carros caros, vivenda, restaurantes de luxo, casou, teve dois filhos, estava tudo a correr bem, e depois a vida deu-lhe para o torto. Nada que não tenha acontecido a muitos no mesmo período. Recessão, crise, deixaram de lhe pagar, perdeu meia dúzia de bons clientes, contraiu dívidas novas, deixou de pagar as anteriores, e por aí adiante.” Calou-se por momentos, como se estivesse tudo dito e Artur aproveitou para falar, preenchendo o silêncio que julgou incómodo. “Então está preso por dívidas? Pensei que já não prendessem ninguém por isso.” David sorriu, o que o fez ainda parecer mais triste.

“Tu conheces o meu irmão, ele não ia desistir, é teimoso que nem uma mula, talvez o seu único defeito. Fez tudo o que lhe foi possível para recuperar, cobrou favores, atrasou pagamentos, meteu advogados e outros bandidos ao barulho, exigiu que pagassem o que lhe deviam, fez trinta por uma linha. E quando nada deu certo fez o que tinha de fazer”

David calou-se de novo, mas Artur percebeu que era só uma pausa e aguardou que ele continuasse.

“Arranjou outra alternativa, foi o que ele fez, ou perdia de vez tudo o que ainda tinha. Fez o que tinha a fazer, foi só isso que ele fez. O meu irmão não é nenhum criminoso. Já há muito tempo que lhe faziam propostas e desta vez ele aceitou. Com o peixe congelado proveniente da América do sul veio um carregamento de cocaína, era só isso, ele só tinha de fechar os olhos e abrir os bolsos. Era só para se safar, era só para se endireitar, mas foi apanhado e veio aqui bater com os costados.”

A pequena porta de entrada, que parecia ainda mais pequena ao lado do enorme portão, abrira-se e a fila começou a avançar. David calou-se e não ia continuar a falar; o seu rosto estava contraído num esgar que expressava uma mistura de dor e de raiva. Parecia que, de um momento para o outro, ia começar aos gritos ou a chorar. Artur avançou e David seguiu-o em silêncio, os dois de cabeça baixa, como numa procissão. Foi Artur que retomou a conversa.

“Qual foi a pena?”

“Seis anos e seis meses. Com sorte sai daqui a uns dois anos, ao meio da pena, pois já está preso há mais de um ano.”

“Vou perguntar ao meu pai se o conhece”, disse Artur, e riu-se, como que a pôr um ponto final no drama. “O meu pai está preso por homicídio, há quase vinte anos que está preso.”

Estavam já dentro da prisão e começavam a sentir-se incomodados. Quando a porta da entrada se fechou com estrondo, encolheram-se ambos, como se a porta da prisão se tivesse fechado para eles.

 


O Prec

 

 

 

Nas ocasiões formais, como as raras entrevistas e notificações, é Aureliano Salgado, no demais é apenas PREC, e sempre assim foi. Curioso que o nome que prevaleceu tenha sido o nome da parte de si que ele sacrificou, pois o revolucionário que foi em nada se assemelha ao homem conformado que se tornou, um homem paradoxalmente livre porque aceitou o cumprimento integral da pena em que foi condenado como seu único modo de vida.

Esvaziou-se do ódio que acabou por o trair, mas esvaziou-se também, no mesmo processo, da paixão que o consumira e alimentara ainda todos aqueles anos, após a morte da revolução, terminado que foi o processo que lhe deu o nome.

Quando disse que o PREC estava vivo e que ele era o PREC não pensou no que dizia, quis apenas chocar; no seu íntimo ele acreditava que o PREC morrera, porém nos últimos anos nada mais tinha feito do que tentar ressuscitá-lo. As suas acções, no início verdadeiros hinos à alegria, tornaram-se tristes, ritos fúnebres de uma revolução morta. Perdida a fé, ele continuou a rezar, por hábito e por raiva, e não se apercebeu de nada.

Quase não falava, calava-se cada vez mais e ficava à escuta. E talvez tenha sido a sua aumentada capacidade de ouvir que o manteve em contacto consigo próprio e com os outros. Recordava-se do homem que tinha sido, mas era incapaz de um simples relance sobre o homem que podia vir a ser. O passado e o futuro apareciam-lhe como duas borda do mesmo precipício sobre o qual se encontrava suspenso como um equilibrista sonâmbulo.

Pouco a pouco, começaram a fazer-lhe confidências; falavam-lhe dos seus problemas, dos seus medos e dos seus anseios; contavam-lhe coisas que não contavam a mais ninguém. Ele sabia escutar e sabia calar-se; às vezes fazia algumas perguntas que os ajudava a clarificar o discurso e a verem-se melhor no espelho que ele lhes oferecia; nunca dava conselhos ou lições de moral; não julgava nem desculpava. Era o confidente perfeito; escutava-os com atenção e sorria de forma quase imperceptível. Precisavam dele, isso era óbvio; o que era menos óbvio é que ele também precisava deles e das suas confidências.

 Quando os presos começaram a recorrer a ele para lhe contarem os seus segredos, tal facto não escapou à atenção dos guardas. A prisão é um mundo, um mundo mais pequeno que o mundo lá fora, regendo-se no entanto por regras que não são muito diferentes e em que a vigilância e o controlo são essenciais. O que Aureliano escutava era importante; sabia muitas coisas e a maior parte não interessava apenas aos presos; por isso começaram a abordá-lo, como quem não quer a coisa, para tirarem nabos da púcara.

- Sabes quem é que tem andado a trazer droga para dentro da prisão? – perguntou-lhe um dos guardas depois de confirmar que estavam sós.

- Não – respondeu Aureliano.

- Não sabes? – insistiu o guarda sorrindo. – Não sabes ou não queres dizer?

- Não – respondeu de novo Aureliano, e o guarda não insistiu, habituado que estava à sua quase mudez.

Aureliano diz apenas “não”, quando melhor poderia dizer “não digo” ou “não quero dizer”, porque Aureliano sabe não só a resposta à pergunta como a razão escondida da pergunta.

O que mais lhe contam são traições de amor, reais ou fruto da imaginação, pequenos grandes esquemas de sobrevivência, preocupações com os filhos, mas no geral nada lhe escapa, e ele sabe tudo o que se passa naquele pequeno mundo e além dos seus muros. Sabe como a droga tem chegado à prisão trazida por alguns presos de confiança que beneficiam de constantes saídas precárias, sabe quem organiza tudo a partir da cadeia, sabe também que o guarda está interessado em descobrir o autor do tráfico que lhe está a arruinar o negócio já antigo e que lhe tem equilibrado as dívidas do jogo.

Aureliano sabe, e sabe também que nunca dirá. Não se mata a galinha dos ovos de ouro, poderia dizer, porque os presos precisam dele e por isso Aureliano ouve as suas confidências; mas ele também precisa deles e é também por isso que os ouve. As confidências dos outros são verdadeiros balões de esperança para Aureliano, mantêm-no ligado à vida, ao futuro, e sem essas confidências há muito que já se tinha afundado em tristeza. Ele não dá muito valor ao que faz, limita-se a escutar os outros e, dessa forma, escuta também em si aquele que todos julgam estar morto.

Quando o filho, quase no final da visita, lhe perguntou se conhecia um dos presos, irmão de um seu amigo, Aureliano não teve qualquer dificuldade em identificá-lo.

 


O povo está na rua

 

 

 

Está sentado a ver televisão e sorri. Não está mais ninguém na cela. Olha as pessoas que se manifestam nas ruas e recorda-se de Abril, parece-lhe que é Abril, e pouco lhe interessa que seja Setembro, quase quatro décadas depois. No entanto, se observasse com atenção, poderia com facilidade ver as diferenças.

A jornalista diz que o número de manifestantes é muito superior ao esperado e as imagens mostram muitas pessoas na rua empunhando cartazes que se percebe terem sido feitos por eles com frases na sua grande maioria de sua própria autoria. Há bandeiras portuguesas e os manifestantes são homens e mulheres de diversas idades. Muitos trazem com eles crianças.

“Trouxe a sua filha a esta manifestação, porquê?”, pergunta a jornalista.

“Porque acho que o futuro, tal como estamos neste momento, não existe. As pessoas fazem cada vez mais sacrifícios e cada vez mais sofrem na pele as agruras destas políticas. Tenho uma filha para criar e não sei qual vai ser o futuro para amanhã. Cada vez nos pedem mais e não nada nos dão em troca. As pessoas fartam-se de trabalhar e chegam ao meio do mês e já não têm dinheiro.”

Não vemos o rosto de quem fala. A tristeza que se adivinha na voz contrasta com os sorrisos e o ar festivo dos manifestantes. Um grande plano de um cartaz permite-nos reflectir sobre o seu conteúdo. ESTAMOS FARTOS DE TROIKAS E BALDROCAS.

Agora é um homem que aparenta cerca de setenta anos que fala. Tem óculos escuros e um chapéu de cabedal preso na cabeça por uma tira apertada no queixo. “Eu sou um antigo combatente da guerra colonial na Guiné. Roubaram-me a juventude e o meu país e agora querem roubar-me a minha pensão.” A câmara faz um plano ainda maior do homem que continua a falar e pede ao governo que abandone o país e deixe o povo em paz. No seu rosto não se adivinha alegria, apenas medo, cansaço e insatisfação. No final o operador mostra de novo um grande plano de um cartaz: “JUNTOS PODEMOS SALVAR A POLÍTICA”. A expressão “JUNTOS PODEMOS” está sublinhada duas vezes com um traço grosso.

O povo está na rua, diz o homem sentado a ver televisão, na cela onde mais ninguém está a não ser aquela multidão que se manifesta. Quase deixa de ouvir o que é dito pelas pessoas, a sua atenção toda concentrada nos cartazes. “TROIKA AQUI A VER SE EU DEIXO”, diz um, “ EU NÃO SOU AMIGO DO GASPAR”, diz outro. As mensagens são variadas e os cartazes são todos diferentes.

Se as pessoas, quando falam, se revelam tristes e desiludidas, os cartazes são todos eles divertidos e esperançosos. “TROIKA FORA”, pode ler-se neste que agora é mostrado, uma seta apontando para o buraco aberto de uma sanita.

“Deviam ter em consideração o povo e ouvir o que queremos”, diz uma jovem. “EM CADA CIDADÃO UM POLÍTICO” diz o cartaz ecoando palavras de José Saramago.

“É a primeira vez que venho a uma manifestação, faço-o pelos meus filhos e pelos meus netos, e também por mim, que tenho a minha pensão ameaçada”, diz uma mulher.

As ruas estão cheias e as pessoas avançam com lentidão, gritando aqui e ali as mesmas palavras de ordem. A canção “Grândola, Vila Morena” é ouvida amiúde. O homem sentado na cela onde mais ninguém está, diz em voz alta, quase grita, as frases que surgem nos cartazes.

“JUNTOS PODEMOS SALVAR A DEMOCARCIA”, “POLÍTICOS, VENHAM VIVER COMO NÓS”, “NÃO ME MANDEM EMIGRAR QUE ESTE PAÍS TAMBÉM É MEU”.

“Hoje ninguém está efectivo”, diz um jovem, e repete, “hoje ninguém está efectivo”, como se mais nada tivesse para dizer ou aquela afirmação fosse tão importante que a tivesse de sublinhar dizendo-as duas vezes. “A única alternativa é emigrar”, diz outro.

A câmara mostra uma mulher a pintar um pequeno cartaz com letras garrafais. As palavras “sacrifícios”, “filhos”, “Portugal” sobressaem num negro reforçado. “A democracia está a rebentar”, ouve-se. “É preciso mudar o estado das coisas”

As pessoas querem falar, querem ser ouvidas, os cartazes que empunham falam com a sua voz.

“Venham para rua”, apela um jovem olhando directamente a câmara, “não percam a oportunidade de uma vida de mudar Portugal”.

Várias gerações estão na rua. Queixam-se do mesmo, exigem o mesmo. O homem sentado na cela sorri. “CONHECIMENTO É CULTURA PARA TODOS”, repete e sorri. “O PASSOS NÃO É COELHO, É BURRO”, repete e sorri ainda mais. Algumas pessoas choram quando a jornalista lhes pede para falarem dos motivos que os levaram à manifestação. Ele continua a sorrir e as lágrimas lavam-lhe o rosto. “RUA”, “BASTA”, DEMITAM-SE”, “ABAIXO O GOVERNO”, “VOZ AO POVO”.

 


O filho de sua mãe

 

 

 

A mulher sentou-se na esplanada, numa das pontas do estrado rectangular, de costas para entrada do café e ficou a olhar o largo, deixando o olhar vaguear sem objectivo. Tem cinquenta anos de idade, mas aparenta menos, não como resultado de especiais cuidados para o conseguir, apenas pelo brilho que lhe anima o olhar e os gestos. O cabelo alourado mostra-se natural e o seu vestuário é simples, ainda que revele bom gosto. Sentou-se e ficou apenas a olhar, as mãos pousadas sobre a mesa, uma sobre a outra, a direita sobre a esquerda.

Um empregado, alto e magro, o longo avental negro acentuando-lhe essas características, assomou-se à porta e viu-a. Aproximou-se dela pelas costas, com gestos lentos, pousou-lhe as mãos nas costas e beijou-a no alto da cabeça. A mulher sorriu sem olhar na direcção dele.

- Olá mãe, como estás? – disse o jovem, puxando uma cadeira ao seu lado e sentando-se. – O que te traz aqui?

A mulher continuava a sorrir, olhando-o agora em silêncio. Ele sorria também, em silêncio. Ela olhou de novo o largo, deixando o olhar vaguear, e por momentos pareceu ter-se esquecido dele

- Não queres saber como correu? – disse ele, o sorriso ainda bem desenhado no rosto sério.

- Não me queres dizer como correu? – respondeu ela com uma pergunta, como é seu hábito.

- Correu bem – diz ele e parece não ir dizer mais nada, no entanto continua a falar. – Correu bastante bem. Sem tensões ou constrangimentos exagerados – e agora, que parecia ir continuar a falar, Artur calou-se, a dizer a si mesmo que até aquele momento não voltara a pensar no encontro com o pai. E é assim que lhe chama, pai, sem qualquer dificuldade, pai. Tinha estado com o seu pai, sobre isso não tinha dúvidas, agora o que pensar sobre isso é que era mais difícil.

- Ele gostou de te ver? – pergunta Helena interrompendo as suas divagações. E antes que ele respondesse, eis que continua a falar: - E tu gostaste de o ver?

- Sim. Sim – diz ele. – gostei dele e acho que ele gostou de me ver. – Não é muito falador.

Helena ri-se. – Tal pai, tal filho – diz entre gargalhadas.

- Eu até falo bastante. É preciso é que me escutem – Cala-se de novo e olha a mãe. – Não queres saber se ele perguntou por ti?

Ela passa-lhe a mão pela cabeça, num gesto que é ao mesmo tempo um carinho e uma reprimenda.

- Juízo, menino, juízo.

Artur levanta-se, vai a uma das mesas, pergunta o que querem, passa pela mãe e diz-lhe que volta já. Ela continua sentada, o seu olhar passeia-se pelo largo, e parece quase serena.

Artur regressa e senta-se de novo ao lado da mãe.

- Fico contente em saber que correu tudo bem. Acho que ele precisava de te ver. E acho que tu também precisavas de o ver.

- Quanto a isso não sei, mas sei que foi bom estarmos juntos. Parecia que já nos conhecíamos. Falámos pouco, como se não houvesse necessidade disso. Não falámos de nada importante, apenas de trivialidades, explicou-me porque estava em greve, disse-lhe que o irmão de um amigo meu estava também preso ali, coisas assim.

A mãe interrogou-o com o olhar, e ele explicou que o irmão do David Matos estava preso, por tráfico de droga, quem é que ia imaginar que isso lhe ia acontecer, sempre tão certinho, tão bem sucedido.

- A vida dá muitas voltas – diz Helena -, muito mais voltas do que esperamos a maior parte das vezes.

- Como quando eu nasci – acrescenta Artur.

- E se me fosse buscar um café, senhor empregado, em vez de mandar bocas – riposta Helena no mesmo tom jocoso.

- Um café cheio a sair – levanta-se de imediato e desaparece dentro do café.

Helena podia dizer-lhe que ela e o pai dele nunca tinham estado apaixonados, ainda que se conhecessem bem e gostassem bastante um do outro. Aureliano só tinha um amor, a revolução e a sua arte, que para ele era uma e a mesma coisa. Ele era todo acção e pouca reflexão, como ela lhe disse uma vez, e ser pai não estava nos seus planos. Pelo seu lado, ela não gostava de complicar as coisas. Quando soube que estava grávida, não teve qualquer dúvida que queria ser mãe, e que a última coisa que precisava era um pai. Tinha sido colocada no interior do país e nem precisou de fazer planos ou esconder o que quer que fosse. Não voltou a ver Aureliano, aconteceu assim, sem que o tivesse de procurar, e quando soube que ele estava preso, teve a certeza de que tinha tomado a decisão correcta.

- Aqui está o seu café, minha senhora, cheio até a cima e ainda a fumegar – disse Artur, dobrando-se sobre a mesa com exagero para pousar o café.

- Quando é que te vais embora? – riposta ela com um semblante sério.

- Vou-me já embora. O cliente tem sempre razão – e faz uma pequena vénia.

- Quando é que te vais embora do país? – prossegue ela.

- Ó mãe, santa paciência, então ainda achas que eu devia sair do país? Tu não és patriota. Olha que não te fica bem.

Ela sorri, se há coisa na vida de que nunca se arrependeu nem alguma vez se arrependerá é de ter tido aquele filho. Sente-o a definhar naquele país e fica triste. Gostava que ele pensasse a sério em sair do país. Tem todas as oportunidades. Devia abrir as asas e voar, mas o filho tem medo, o pior dos medos, o medo de não ser corajoso, e vai ficando.

 


O cantor morreu

 

 

 

            Vinte e três de Fevereiro de mil novecentos e oitenta e sete. Zeca Afonso morre em Setúbal. O funeral realiza-se no dia seguinte. Cravos vermelhos. Braços erguidos. Profundo pesar. Canções entoadas a uma só voz. Trinta mil pessoas acompanham o cortejo. A urna, coberta com um singelo pano vermelho, atravessa a multidão como um barco à deriva. Mil e trezentos metros são percorridos em quase duas horas. Muitas bandeiras vermelhas. Uma banda toca repetidas vezes a Grândola. Os portadores da urna revezam-se. Um homem todo vestido de preto chora. São vários os músicos que carregam o caixão. Agora é José Mário Branco, bem à frente. Os rostos estão fechados. Quando não cantam, as pessoas mantêm-se em silêncio. Só os cravos gritam.

Aureliano chora. Todo vestido de negro, apresenta um luto pesado, destacando-se na multidão. Aureliano chora vestido de negro. Recusou vários cravos que lhe ofereceram. Está todo de negro. Chora. Quer cantar mas não consegue. Chora.

Algumas pessoas olham-no com estranheza mas ele nem dá por esse olhares interrogadores. Tivesse na mão o cartaz com que faz acompanhar nos últimos tempos a fatiota que enverga e as pessoas ainda mais estranhariam, ainda mais se interrogariam, ou talvez não, que as pessoas são ainda mais estranhas do que a estranha realidade.

Todo vestido de negro, choroso, Aureliano caminha devagar erguendo o cartaz interrogador: Vamos fingir que a revolução nunca aconteceu? Muitas pessoas sorriem, algumas soltam gargalhadas, mais de escárnio do que por simpatia, a maior parte no entanto ignora-o.

Aureliano caminha devagar, enlutado, choroso, a própria imagem da desgraça. Pergunta a si mesmo se será verdade que a revolução verdadeiramente nunca aconteceu. Ou teria ela apenas morrido?


Aquela coisa dos cravos

 

 

 

Pararam antes de chegar ao bairro porque ele queria aproximar-se progressivamente, vê-lo do geral para o particular, como ele próprio disse. “Os trabalhos são à escala do bairro, é preciso perceber o bairro no seu conjunto para poder realmente compreender as diversas obras na sua dimensão e no seu diálogo umas com as outras e com o meio envolvente”, diz Nuno Lobo a Artur Falcão. “É um projecto muito interessante”, continua Nuno, “e foi desenvolvido em parceria pela Câmara Municipal e por uma associação local. É um exemplo a seguir, sem dúvida, muito interessante e promissor.” Continuaram a andar. Nuno olhava para a esquerda e para a direita, parava, retomava a marcha, parava de novo. Artur ia atrás dele, tentando acompanhar-lhe a marcha e o olhar. Nuno estava ali para fotografar, era um trabalho, porém a máquina fotográfica com a enorme objectiva continuava encostada ao seu peito e ele parecia ter-se esquecido dela. Entraram no bairro, percorreram ao acaso as suas ruas, cruzaram-se com muitos negros e ciganos.

Em Julho de 2008 aquele mesmo bairro fora palco de violentos confrontos entre as comunidades, africana e cigana, que ali habitam. Os murais que cobrem agora o bairro chegaram depois, fazendo os edifícios falarem de muito mais do que miséria e resignação.

Nuno regressou ao ponto de partida, frenético, olha ora para um ora para outro mural, aproxima-se, afasta-se, fecha um olho, fecha outro, murmura, ignora por completo Artur, e este ignora-o também. Nuno tinha-lhe dito que podia ir com ele, mas que não esperasse que lhe desse muita atenção e, sobretudo, que não o interrompesse enquanto trabalhasse. Nuno pede a Artur que espere ali com o material e regressa ao interior do bairro.

Então isto é que é fotografar, pensa Artur e sorri. Se perguntasse a Nuno o que estava a fazer, de certeza que ele lhe responderia, com surpresa, que estava a fotografar. E quando ele lhe fizesse notar que não a tirar fotografias, Nuno responderia, num tom cortês mas frio, que para tirar fotografias primeiro é preciso pensar e decidir que fotografias se quer tirar. Depois é fácil, acrescentaria com um sorriso irónico, é só tirar as fotografias. Esta é a parte mais fácil, sublinharia, se não percebes isto é porque não percebes nada de fotografia.

Artur ficou a olhar um enorme mural que cobria quase por inteiro a lateral de um dos vários prédios de cinco andares que compõem o bairro, todos eles pintados de um enjoativo amarelo-torrado. Nuno desaparecera da vista e ele observava com atenção o mural que reunia quatro rostos de dois andares de altura cada um. Reconheceu com facilidade um Bob Marley sorridente e um Che Guevara circunspecto, mas estava com dificuldades em identificar os outros dois rostos. Um era um militar, o que era óbvio, pelo boné que ostentava, um rosto que lhe parecia familiar, e o outro era um negro sorridente como um boné com a pala para trás. Um negro e um branco na fila de cima, um branco e um negro na fila de baixo. Ambos os negros sorriem, os brancos estão circunspectos, o militar parece quase zangado.

Nuno regressou e encontrou Artur a olhar o mural com um ar intrigado. Colocou-se ao seu lado e ficou também a olhar.

- Podia chamar-se os quatro magníficos, não achas? - perguntou Nuno.

- Podia até concordar, mas só reconheço os dois de cima, ainda que o do lado esquerdo, em baixo, me pareça bastante familiar.

Nuno ri á gargalhada e parece mais calmo do que antes.

- Que falta de cultura – diz sem deixar de rir, quase se engasgando. – Este mural é da autoria de Mendivan Blackboy, também conhecido como Ivanildo Mendes, um writer da Portela. – diz com um ar de entendido que usa com frequência quando quer surpreender e impressionar os amigos. – Em cima, lado a lado, estão o Bob Marley e o Che Guevara, como dever ter percebido. Em baixo, e vou começar pelo lado esquerdo, está um dos maiores rappers de todos os tempos, um verdadeiro ícone, assassinado em 1996.

Aqui chegado Nuno fez uma pausa e olhou para Artur, como que á espera que ele dissesse alguma coisa.

- És mesmo um daqueles gajos da televisão – disse Artur – que só parecem inteligentes quando estão a ler o teleponto. - Decoraste todo o conteúdo das notas que te deram, não foi, grande parvalhão?

Nuno olhou para Artur, divertido, parecendo disposto a esticar o momento ao máximo.

- Nem parece teu, então tu não reconheces o rosto da direita. Então não se vê logo que é um capitão de Abril?

- Porra, um capitão de Abril? – interrompeu Artur sem deixar de olhar para o mural. – Mas o que é isso?

- O 25 de Abril, a revolução, 74!

- O quê? – respondeu Artur quase a desmanchar-se de riso.

- Caralho, Artur, aquela coisa dos cravos, estás a ver ó pazinho! – e riem os dois à gargalhada, até que Artur fica muito sério, o rosto contraído num esgar.

- Porra, foda-se, é o cabrão do Salgueiro Maia!

Riem-se de novo e ficam a olhar o mural em silêncio.

Nuno arma o tripé e prepara-se para começar a tirar as fotografias que imaginou. É o que faz na meia hora, sempre frenético, de um lado para o outro, ignorando Artur. Esqueceu-se de acrescentar, o que fará mais tarde, que o Salgueiro Maia foi uma proposta da organização ao autor, para substituir Amílcar Cabral, dada a exigência de não serem incluídas figuras partidárias.

 


À escuta

 

 

 

Habituado a escutar, habituado a calar-se, Aureliano tinha-se esquecido de como era falar de si, porque até há pouco tempo nada tinha para dizer, porque até há pouco tempo não se importava com o que os outros pensassem dele. Tinha morrido, percebia agora, mas apenas o estritamente necessário para se ter mantido vivo. Tinha vivido, não a sua vida mas a vida dos outros, escutado os seus medos, os seus anseios, os seus contratempos, isso era a vida, e até as suas pequenas alegrias e os seus sonhos esquivos, e isso também era a vida.

As pessoas continuavam a procurá-lo, a contar-lhe o que precisavam de contar, a escutarem-se através dele, no entanto, começavam cada vez mais a perguntar se precisava de alguma coisa, numa atitude que ia além da mera cortesia, revelando verdadeira preocupação pelo seu estado. Nunca antes o tinham visto como um deles, com necessidades e anseios como todos eles. Próximo dos outros e distante de si mesmo, também ele tinha ignorado as suas necessidades; ao escutar os outros esquecera de se escutara a si próprio; mantivera-se calado, agora sentia necessidade de dizer-se.

Estava a arrumar livros, de costas para a entrada, e não o ouviu chegar. O homem sentou-se sem fazer barulho e esperou que Aureliano desse por ele. Ele colocava os livros no seu lugar e, à medida que os ia repondo, ajeitava os restantes, acto desnecessário que executava de forma meticulosa. Lia-lhes os títulos e os autores, confirmava-lhes a ordem. Cada livro tinha o seu lugar e no entanto eram todos diferentes, mesmo quando falavam das mesmas coisas. Aureliano não lia, a leitura nunca fizera parte dos seus hábitos; quando não estava a ouvir alguém, quando estava sozinho, gostava de fechar os olhos e ouvir de novo algumas daquela vozes a contarem as suas histórias. Era capaz de reproduzir na íntegra longas confidências, como se fosse ele que as criasse à medida que as ia ouvindo. Apercebeu-se quase com surpresa da presença do outro e olhou-o à espera que dissesse ao que vinha.

- Olá Prec – disse o outro, olhando de volta como que inquirindo da sua disponibilidade para o ouvir.

Aureliano continuou à espera, o seu rosto inexpressivo ganhou uma expressão de grande serenidade.

O outro parecia não se decidir, olhava à volta, olhava de novo para Aureliano. Já tinha falado com ele várias vezes e não costumava hesitar; era um homem decidido, talvez demasiado decidido, como ele costumava dizer.

- Soube que o teu filho te veio visitar – disse num arranque e depois parou, como se lhe tivesse faltado coragem para continuar.

Aureliano abriu ligeiramente os olhos, como se sorrisse, e assentiu com um ligeiro aceno de cabeça.

- O meu irmão é amigo do teu filho – continuou Filipe Matos, e de novo parou.

Aureliano queria responder que sabia disso, que o filho lhe tinha contado, mas estava habituado a calar-se, a falar quando era estritamente necessário e apenas o suficiente para que a conversa continuasse, para que aquele que falava clarificasse o seu discurso, e Filipe não estava a falar de si, estava a tentar que Aureliano falasse, e Aureliano não estava habituado a falar de si, há muito que esquecera como se fazia.

- Artur Falcão, é o nome dele, não é? O meu irmão chama-se David, cresceram no mesmo bairro, acho que foram colegas de escola. Eu tenho uma vaga ideia dele, mas sou alguns anos mais velho do que ele, e dois ou três anos nestas idades contam muito. O meu irmão diz que ele ficou bastante surpreendido por eu estar preso, o que não me admira, pois até eu estou surpreendido por estar preso, não que eu não tivesse percebido o que vinha a caminho, que percebi, mas só compreendi verdadeiramente onde estava metido demasiado tarde.

Aureliano tinha baixado os olhos e parecia ausente. Filipe calou-se, surpreendido, e ficou a olhar o abandono do outro. Nunca o tinha visto assim, estava convencido que nunca alguém o tinha visto assim. O Prec estava sempre atento, parecia entender tudo o que lhe diziam muito melhor do que aquele que dizia, era como um candeeiro que se acendia no escuro e iluminava tudo em seu redor, e agora estava ali, frágil, quase indefeso. Filipe estremeceu. Chegou-se à frente e pareceu ir abraçar o outro. Aureliano levantou a cabeça e olhou-o com o rosto iluminado.

- Eu tinha um filho e não sabia. Chama-se Artur Falcão. Não é extraordinário?

Filipe sentou-se de novo, descontraiu-se, e ficou à espera que Prec continuasse a falar.

 


Adeus

 

 

 

            - Eu não sei o que quero, mas sei muito bem o que não quero, e isso é mais do que suficiente – Aureliano espreitou Helena e percebeu que ela não o estava a ouvir. Enrolava o cabelo na mão direita, numa madeixa fina, largava-o e enrolava de novo, com gestos lentos e ritmados. Continuou a observá-la e esqueceu-se do que estava a dizer, embalado pela contemplação daquela mulher que se lhe oferecera com idênticos gestos, lentos, ritmados, como se o centro do mundo fosse ali, naquele lugar, e nada mais importasse.

            Saber o que não se quer é importante, mas saber o que se quer é ainda mais importante, podia ela ter-lhe respondido se o tivesse escutado, ou o quisesse dizer, porque para ela o não querer era tão importante como o querer. E o mais importante era não se lamentar, nunca se lamentar, e isso era uma das coisas que gostava nele, nunca se lamentava.

            - Vou viver para o Alentejo – soltou ela como se estivesse a fazer uma comunicação banal.

Aureliano olhou para ela em silêncio e Helena duvidou que ele a tivesse ouvido. Ainda pensou repetir a frase, mas a verdade é que não tinha qualquer importância.

- Se quiseres podes ficar aqui até ao fim do mês. A renda está paga – disse, começando a vestir-se com os mesmos gestos lentos e ritmados que indiciavam a obstinada ponderação que a caracterizava.

Aureliano vestiu-se com gestos rápidos, que pareceriam quase zangados se um sorriso leve não riscasse o seu rosto habitualmente inexpressivo. Aproximou-se dela, puxou-a para si com um gesto brusco e beijou-a na boca com delicadeza.

Helena sabia que ele nada lhe perguntaria e sabia também que nada mais lhe diria se ele não perguntasse.

Aureliano sabia que não queria que ela fosse embora, sabia que não queria que ela saísse assim da sua vida, porém não sabia o que queria, só sabia que não queria impor-se, não queria de forma nenhuma forçá-la. Saber o que não queria não era suficiente, ela ter-lhe-ia dito isso, se o quisesse fazer, mas não queria.

Beijaram-se, despiram-se, abraçaram-se. Sabiam o que queriam.

 


O alvo

 

 

 

Diogo Mascarenhas nunca tinha feito nada na vida, dizia quem o conhecia das inúmeras noitadas de putas, vinho e fados, que era o mesmo que dizer que vivia bem e à conta, sem problemas de dinheiro. Já o pai e os irmãos próximos diziam que ele nunca tinha feito nada da vida, o que vinha a dar ao mesmo, aqui se sublinhando as muitas oportunidades que desperdiçou. Quanto a ele, pouco se importava com o que pensavam dele, estava-se nas tintas, só queria gozar a vida, o que queria dizer, segundo ele, beber até cair, fornicar enquanto pudesse e nunca se aborrecer. A família suportava-lhe o modo de vida, mantendo-o afastado dos negócios familiares, geridos pelo pai e pelos irmãos. Era ele mesmo que garantia que assim dava muito menos prejuízos, não se metia em negócios ruinosos e o dinheiro que gastava era menos do que lhe cabia em herança, se fossem a dividir os bens por morte da mãe.

Não se metia em política, isso era para os outros, só queria viver descansado e levar a sua vida dissoluta, programa que anunciava a quem o quisesse ouvir. A seu modo, poderia dizer-se que era contido, pelo menos quanto ao dinheiro, que gastava sem fazer grandes contas, porém sem o desperdiçar para além do necessário. Pagava a prostitutas, porém não sustentava amantes, não tinha carro, andando sempre a pé ou de táxi, vestia bem mas sem excessiva ostentação. Era educado, não ostentava preconceitos ou antipatias. Só queria levar a sua vida descansado, sem que lhe custasse muito.

A sua vida era monótona e previsível, dormia todo o dia, só saía à noite e regressava a casa já de manhã. Tinha a sua rotina, os seus locais de passagem que cumpria com um afã quase religioso. Fazia todos os dias o mesmo percurso, de casa ao café, do restaurante ao bar, da casa de fados ao prostíbulo. Levava uma vida descansada, sem sobressaltos, até que Aureliano o escolheu como alvo.

Aureliano sabia que Diogo Mascarenhas era o primogénito de uma família de industriais e latifundiários poderosos. Sabia que ele levava uma vida de burguês, sem quaisquer preocupações. Não sabia mais nada sobre ele, nem lhe interessava saber. Diogo Mascarenhas era o seu próximo alvo.

 


Embriaga-te

 

 

 

“Enquanto estamos vivos, precisamos de viver e de ser felizes” dizia Rui, o copo de vinho erguido na direcção de Artur. Estava embriagado e Artur pensou que faltava muito pouco para começar a recitar os seus poemas; estendeu o seu copo e tocou com estrondo no copo que Rui conservara erguido.

“Mas se estamos vivos por que precisamos de viver?”, desafiou-o, batendo com o copo vazio no tampo da mesa. Rui encheu de novo os copos, bebeu um gole e voltou a falar demasiado alto, como se estivesse a recitar: “Não basta sobreviver, é preciso viver. Precisamos de viver e de ser felizes. Precisamos de transbordar de felicidade. Precisamos de ser tão felizes que a única tristeza seja não podermos ser ainda mais felizes.”

“Precisamos é de nos embriagar”, sublinhou Artur, levantando e erguendo o copo de vinho tinto tão alto quanto conseguiu.

“É preciso embriagarmo-nos” respondeu Rui, erguendo-se também. “Embriaga-te, embriaga-te sem cessar”, continuou num tom agora claramente declamatório, “Embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia e com virtude, à vossa escolha.”

“Deixa lá o Baudelaire em paz”, disse Artur, mas Rui já não o ouvia.

 


Do sonho ao pesadelo

 

 

 

É ao mesmo tempo fácil e difícil seguir o percurso de Aureliano após a revolução de Abril, percurso que o leva do sonho de Abril ao pesadelo de Abril. Quase duas décadas depois, esgotado o sonho do comunismo russo, continuava a carregar o fogo de Abril. O cavaquismo gastou-o. A adesão à União Europeia desgastou-o. As suas acções eram cada vez mais mecânicas, baças, como se já não acreditasse. A democracia consolidava-se.  A histeria do consumismo instalava-se.

Nele, a esperança alternava com o desalento, o que seria normal se a esperança e o desalento não alternassem com tanta frequência e tanta intensidade, como se travassem uma luta de que só um desses sentimentos podia sair vencedor e ele sairia sempre vencido, porque nele quer a esperança quer o desalento se manifestavam cada vez mais por um único sentimento, uma raiva desesperada e triste que o afastava cada vez mais de si mesmo.

Aureliano não tinha consciência disso; ele, que tinha vivido intensamente a alegria da esperança revolucionária, era agora uma pessoa triste e amarga. Percebia vagamente que se estava a afastar de si mesmo, que se tinha perdido, mas obstinava-se em prosseguir o caminho iniciado.

Continuava a agir como se acreditasse ainda na revolução, sem se aperceber que cada uma das suas acções era cada vez mais um elogio fúnebre dessa revolução que acreditava traída. Estava cada vez mais sozinho e as suas acções, que sempre tinham sido individuais, pareciam agora, sem um contexto apropriado, meras divagações de um lunático.

A polícia, que sempre o tinha tolerado, dava-lhe agora ainda menos importância. Sabiam que nunca violava frontalmente a lei, mantendo-se sempre entre a manifestação política e a manifestação artística.

 


A declaração

 

 

 

Não fosse alguém estar a ler a folha de papel afixada na sua porta e ele nem teria dado por isso. No alto da folha estava escrito “declaração”. Aproximou-se para ler o resto e surpreendeu-se com o seguinte texto: “Para os devidos efeitos e a quem interessar, declara-se sem sombra de dúvida que Diogo Mascarenhas é um verdadeiro parasita que vive à conta do povo”. Não estava datado nem assinado. A surpresa inicial foi substituída por um sorriso, e Diogo Mascarenhas não conseguiu evitar que o seu olhar vagueasse em redor a ver se o engraçadinho estaria perto para se rir na sua cara. Olhou novamente para o papel e seguiu o seu caminho, logo se esquecendo do sucedido. Só se lembrou mais tarde quando voltou para casa e de novo viu a folha; resolveu então arrancá-la, propósito que satisfez com facilidade.

Nos dias seguintes voltou a arrancar várias dessas declarações, não sem antes as levar ao posto de polícia da zona, onde várias vezes se riram de si, tendo mesmo chegado a ouvir trocas de comentários não disfarçadas em que que reconheceu a frase “Lá vem o parasita”, pontuada por risos alarves.

Depois as declarações deixaram de ser afixadas à sua porta, e quando pensou que tinham desistido, eis que à saída do seu restaurante preferido, encontra um homem como um cartaz enorme, foi o que lhe pareceu, gigantesco mesmo, que afirmava em maiúsculas ser Diogo Mascarenhas um verdadeiro parasita que vivia à conta do povo. Dirigiu-se para casa e o homem seguiu-o, silencioso, o cartaz bem erguido.

Voltou a encontrar esse homem várias vezes, e se por muito tempo o ignorou, a partir de uma certa altura começou a interpelá-lo e a tentar dialogar com ele, enfrentando o obstinado silêncio do outro, que se limitava a agitar o cartaz em jeito de resposta.

 

 

 


Não se pode viver entre parênteses

 

 

 

Estava ainda junto aos muros da prisão quando a polícia o deteve e o conduziu à esquadra, para interrogatório. Deu por si com fome e só então percebeu que não comia há quase dois dias. Nesse momento decidiu que não podia fazer outra coisa, ia continuar em greve da fome, tal como o seu pai, e exigir a queda do governo. Começou a rir sem parar, e um polícia que acorreu intrigado, perguntou-lhe o que se passava. Quando lhe comunicou a sua decisão, o polícia começou também a rir. Mais um, comentou, é uma epidemia, e foi-se embora a rir. Na altura não percebeu o que ele queria dizer, mas em breve perceberia o seu comentário. A greve da fome para que o governo se demitisse saíra da prisão e reproduzia-se no mundo cá fora com a velocidade de um vírus.

Tudo começara com um preso que entrou em greve da fome pedindo a demissão do governo. A princípio ninguém se importou com Aureliano Salgado, porém a sua acção era altamente contagiosa, como se percebeu pela inesperada adesão massiva dos presos, primeiro apenas naquele estabelecimento prisional e logo depois em todos os estabelecimentos prisionais do país. Contrariando os procedimentos habituais, Aureliano Salgado foi transferido de imediato para o hospital prisional, invocando-se riscos para sua saúde. Inexplicavelmente, a população começou a sair para a rua, solidarizando-se com Aureliano e a sua exigência. Muitos declararam-se também em greve da fome.

Não se pode atribuir à acção de Artur uma verdadeira relação de causa e efeito com o que se seguiu, porém a sua repetida transmissão televisiva de certeza que contribuiu de alguma forma para o que aconteceu.

Nos muros brancos da prisão um jovem magro extensamente tatuado escreve uma frase com letras garrafais, frase que cresce lentamente, letra a letra, palavra a palavra, até se impor inteira.

NÃO SE PODE VIVER ENTRE PARÊNTESES

Mas o que quer dizer aquilo? Alguém filma a acção e será esse pequeno vídeo que será transmitido pouco depois em todos os canais televisivos com a mesma pergunta repetida. Mas o que quer dizer aquilo?

Artur não foi interrompido e estava já a abandonar o local quando foi detido pela polícia, alertada pela prisão para o sucedido. Noutras circunstância os próprios guardas prisionais interviriam, mas com a greve da fome em curso e a atenção dos meios de comunicação, o melhor, concluíram, era deixar as coisas com a polícia.

Escreveu a frase sem hesitações, todavia, se lhe perguntassem o seu significado, não saberia explicá-lo e remeter-se-ia ao silêncio. Que cada um lhe desse o significado que quisesse. Nem sabia porque escrevera aquela frase, apenas acontecera. Há já alguns dias que lhe assaltava a ideia, ou apenas a sensação, de que vivia entre parênteses, uma vida suspensa, interrompida, fechada sobre si mesma.

Tinha planeado escrever uma outra frase, brincando com alcunha do pai e o tempo em que as pessoas de novo saíam à rua e no entanto, não sabe porquê, não o fez, e escreveu sem hesitações a frase que depois apareceu em muitos cartazes erguidos nas manifestações espontâneas que mais tarde encheram as ruas.


Matei-o!

 

 

 

O advogado era oficioso, recrutado entre os estagiários a advogados, todavia não era daqueles que se mantinha calado até às alegações, onde pouco mais diria, terminando em voz tremida com um conciso pedido de “Faça-se justiça!”.

O silêncio de Aureliano Salgado em julgamento era estratégia própria do arguido e o jovem advogado bem o tinha advertido de como esse silêncio lhe seria prejudicial. A arma pertencia à vítima, que se sentira ameaçado pela acção do réu e a comprara para o intimidar, como dissera a quem o quis ouvir.

“Quando lhe apontar a pistola vai fugir a sete pés, vocês vão ver, estes revolucionários são todos uns merdas.”

A arma do crime pertencia a Diogo Mascarenhas, argumentou o jovem advogado, que naquele dia, surpreendendo Aureliano Salgado, que o esperava, a apontou ao réu, o qual, temendo pela sua própria vida, se agarrou à pistola e tentou desviá-la de si, com as consequências que sabemos. Nestas circunstâncias, dificilmente se poderá acreditar, sem sombra de dúvida, que o réu pretendeu matar a vítima.

Alguns dos presentes abanaram a cabeça em sinal de concordância, mas era claro que nem os juízes nem o advogado de acusação se deixaram comover por essa argumentação. E depois, como alguns pensaram e outros o chegaram a afirmar, como se explica que tendo sido assim que as coisas aconteceram como se explica que o réu nada diga e assuma que matou Diogo Mascarenhas.

O réu, como foi argumentado pelo advogado de acusação, era um perigoso revolucionário, com um passado de acções revolucionárias, um homem desesperado que não olhava a meios. E passando do réu para o seu jovem advogado, acusou-o de ver demasiados filmes de acção e mistério, apelidando-o de Poirot de pacotilha, acusação pontuada com a gargalhada curta que lhe era habitual quando proferia afirmações que pretendia jocosas.

O jovem advogado apresentara Aureliano Salgado como um artista, descrevera algumas das suas acções e salientara a sua qualidade artística, construindo a imagem de alguém incapaz de qualquer acto de violência que não se restringisse à sua arte, pois toda a arte, sublinhou, é sempre violenta, argumentação que o procurador por sua vez arrasou com uma pequena frase de irónica concordância.

“ O réu é um artista, não podemos deixar de concordar”, disse o procurador e depois de um pequeno silêncio dramático concluiu: - Um verdadeiro artista do crime.

Aureliano estava ausente, esperava apenas que tudo acabasse para cumprir a sua pena. O seu rosto não tinha expressão, o mesmo rosto que um jornalista descreveu como cruel e talhado em pedra, rosto de assassino impiedoso.

O jovem advogado pediu com insistência a Aureliano Salgado que contasse a verdade ao tribunal e, perante o seu desinteresse, ordenou-lhe que contasse que não o quisera matar, que tinha sido o outro que o ameaçar com a arma e que Aureliano apenas se tentara defender. Pediu-lhe, ordenou-lhe, implorou-lhe, exigiu-lhe.

A resposta de Aureliano foi sempre a mesma resposta curta e incisiva, não deixando margem para dúvidas.

“Matei-o.” “Matei-o.” “Matei-o.”

Agora já não é jovem, passaram quase duas décadas, mas ainda é advogado, um advogado experiente, um dos melhores advogados criminais do país. Às vezes ainda ouve a voz de Aureliano.

“Matei-o.” “Matei-o.” “Matei-o.”

“Matei-o.” “Matei-o.” “Matei-o.”

Responde-lhe agora como antes: “A questão não é se o mataste, a questão é se o quiseste matar.”

Não tem quaisquer dúvidas sobre a sua inocência. As prisões estão cheias de inocentes, homens e mulheres que diminuem ou rejeitam os factos pelos quais foram condenados, mas também existem verdadeiros inocentes e vítimas de erros judiciários. Não basta que o crime tenha sido praticado, é necessário, é imprescindível que seja possível provar, para além de quaisquer dúvidas razoáveis, que o crime foi praticado por aquela pessoa. E passadas quase duas décadas ainda acredita que Aureliano Salgado nunca deveria ter sido condenado.

Um dia, muitos anos depois, quando foi visitar um constituinte à prisão, perguntou por ele, e disseram-lhe que por ali estava, como se fosse parte da prisão, como se fosse um fantasma. Pelo menos foi isso que ele sentiu.


Geração à rasca

 

 

 

“Estou à rasca, estou mesmo à rasca”, quase gritava Jorge, e Artur respondeu-lhe no mesmo tom, “Estás à rasca vai à casa de banho”. Jorge sorriu mas continuou a sua lengalenga, “Estou à rasca, estou mesmo à rasca”, e rematou erguendo alto os braços, “Somos a geração à rasca”.

A jornalista ri, também ela está à rasca, também ela é jovem, não que tenha entre dezoito e vinte e um anos, tem quase trinta e cinco, mas é ainda jovem, muito jovem, não a juventude dourada que hoje todos perseguem, mas uma juventude incómoda de quem tem cada vez menos possibilidades de ser adulto, uma juventude que todos os dias tem de deixar para amanhã o que quer mas não pode fazer hoje.

Tenham paciência, está quase, vai chegar o dia. Trabalhar a recibo verde é mau, mas estar desempregado é ainda pior. Pagam-vos mal, é verdade, mas quem quer trabalhar não se pode queixar. Dependem da família, é verdade, mas têm autonomia de vida. Vivam o presente, ele está aqui e é maravilhoso. Sejam empreendedores, vão atrás das oportunidades. Isto vai passar, está quase. Estamos à rasca, estamos mesmo à rasca.

Artur olha à sua volta e vê pessoas incríveis, fantásticas, lutadoras determinadas e criativas, mas existem muitos que desistiram já e os que continuam a resistir estão cada vez mais tristes e cansadas e o país também, cada vez mais amargo e sem esperança.

 

 


Na primeira pessoa

 

 

 

            Andei em duas escolas primárias. A primeira apenas durante um ano. Detestei. O professor era muito autoritário. Todos os dias que tinha de ir para a escola, ficava doente. Vomitava durante o caminho e a minha mãe acompanhava sempre até à porta da sala de aulas.

            O meu pai mudou de emprego e de residência e a família acompanhou-o. Calhou-me uma professora que me tinha em grande consideração.

Depois frequentei sempre escolas na mesma localidade, conforme ia progredindo. Desisti da escola após o 25 de Abril e nunca mais voltei a estudar. Nunca tive dificuldades na escola. Gostava de ir à escola.

Nunca tive muito amigos na escola, mas tinha alguns mais chegados.

Nunca me meti em brigas, sempre fui bastante calmo e gentil, apesar de bastante teimoso e ter alguns problemas com figuras autoritárias.

 

Já muitas vezes lhe fizeram as mesmas perguntas, como se fosse sempre a primeira vez que as fazem, e umas vezes responde com verdade e outras fantasia, no entanto nunca o confrontaram com quaisquer discrepâncias.

 

Depois de deixar a escola entreguei-me por completo à revolução. Passava os dias na rua, integrava as manifestações em curso, vivia intensamente a revolução. Nunca trabalhei verdadeiramente. Fazia pequenos biscates. Vivia do favor dos amigos e conhecidos. Dormia onde calhava e comia onde me ofereciam de comer. Precisava de muito pouco, quase nada. Passei anos assim. A pouco e pouco começaram-me a pagar para fazer animação de rua e tornei-me frequente em todo o lado em que algumas pessoas se manifestavam. Depois fui preso.

 

Na prisão só aceitou trabalhar quando lhe acenaram com a colocação na biblioteca. Ali não se fazia barulho, ali o tempo passava mais devagar, ali quase se esquecia de que estava preso. Aliás muitos presos ali ficavam horas sem fim pelo mesmo motivo. Podiam isolar-se sem o peso da solidão, podiam quase esquecer que estavam na prisão.

 

Nunca tive conta no banco. Recebi sempre em dinheiro e logo o gastava, tão depressa quanto o recebia.

Não tenho quaisquer problemas de saúde.

Nunca consultei um psicólogo ou um psiquiatra. Não tenho nada contra, apenas nunca senti necessidade.

 

Muita gente achava que ele era louco, que era poucochinho, como lhe disse uma vez um guarda, mas ele não se importava. Somos todos um pouco loucos, dizia às vezes, e os que são normais são ainda um pouco mais loucos.

 

Já pensei em suicidar-me mas foi há muito tempo, era ainda adolescente, e qual é o adolescente que nunca em matar-se. Mas não foi a sério, nunca tentei suicidar-me, apenas pensava nisso às vezes.

Fui criado pelos meus pais, com a presença próxima dos meus avós paternos.

A vida em casa era boa. A minha mãe era afectuosa comigo, o meu pai também, mas estava quase sempre ausente em trabalho.

Tinha uma irmã, gostávamos muito um do outro. Faleceu era eu adolescente. Era oito anos mais velha do que eu.

Existiam regras rígidas em minha casa, ainda que a minha mãe fosse bastante permissiva.

 

Mas para que nos perguntam estas coisas? – interrogava-se muitas vezes. Muitas vezes inventava, fantasiava, dava-lhes motivos para o homicida que era. Fora criado por uns tios, num clima de violência e extremo conflito. Começou a consultar psicólogos e psiquiatras desde muito novo, sobretudo depois que incendiou. Muitos abriam os olhos e acenavam com a cabeça. Só podia ser assim. Todos os livros de criminologia dizem o mesmo. Ficavam muito sérios. Os poucos que sorriram quando ele fantasiava foram os poucos a quem respondeu com verdade.

 

Nunca fui casado ou vivi em comum com alguém. Tive alguns relacionamentos amorosos, poucos.

Estive profundamente apaixonado pela revolução. Às vezes acho que ainda estou. Tenho um filho. Tenho um filho mas não sabia.

 

E pela primeira vez fala do filho. Explica o que aconteceu. Diz-me como foi importante conhecê-lo, diz como está feliz por o ter conhecido.

 

Nunca fui de me meter em problemas, quer em criança quer em adulto. Só tive problemas com a justiça uma vez antes de ser preso. Levaram-me para a esquadra para identificação mas soltaram-me poucas horas depois.

Estou preso por homicídio, mas você sabe isso tão bem como eu.

Leia a sentença, você tem acesso a ela. Os factos estão lá, os que foram dados como provados e os que não foram dados como provados.

 

Responde ao que lhe perguntam, reportando-se com fidelidade à sentença, nem mais nem menos. Só hesita quando lhe perguntam o que poderia ter feito para evitar o crime. Diz que é fácil dizer o que poderia ter feito, porém a verdade é que fez o que fez e está feito. E quando lhe perguntam se está arrependido não responde, remetendo-se ao silêncio.


Ninguém ouve a rua

 

 

 

            “Ninguém ouve a rua. O país poderia encher as ruas e eles continuariam surdos. Os primeiros-ministros dizem sempre que não governam em função de protestos. E os presidentes idem aspas. Nos anos de 1983/1985 foi a mesma coisa. A história talvez não se repita mas tem pouca imaginação. Para que fossemos ouvidos teríamos de estar todos na rua, incluindo os membros do governo e o próprio presidente. Só seremos ouvidos quando não houver ninguém para nos ouvir.” Disse isto e riu, riu muito, quase engasgando com a cerveja que fazia questão em continuar a beber. Ria e bebia. Bebia e ria. Artur Falcão olhou para ele e abanou a cabeça, como se concordasse, mas não se riu.

            “Não estejas tão sério, porra, pareces a própria seriedade em pessoa. Estás com cara de quem está com prisão de ventre.” E continuou a rir. A rir e a beber. A beber e a rir.

            “Bebes mais uma?”, perguntou sem esperar resposta, gritando para o balcão o pedido de mais de duas minis.

            “Este país é uma anedota. E ainda por cima não tem piada nenhuma”, continuou. “Não tem piada mesmo nenhuma. Mas às vezes até me faz rir. Já sabes que está um cabrão de um preso em greve da fome exigindo que o governo se demita?” Fez uma pequena pausa e repetiu a frase, à espera de uma resposta de Artur.

            “O cabrão desse preso é meu pai”, afirmou Artur perante a surpresa do outro.

            “O quê? Estás a gozar comigo? Achas que tenho cara de palhaço?”

            “Esse preso é meu pai”, reafirmou Artur, e desta vez o seu rosto abriu-se num sorriso. “É meu pai. É meu pai e apoio-o a cem por cento.” Bebeu um longo gole de cerveja e olhou o amigo em silêncio. Ora porra, era o seu pai, daqui a poucos dias todos saberiam, e a verdade é que ele se orgulhava do pai, a verdade é que ele o admirava e respeitava.


A greve de fome

 

 

 

 

- A greve de fome nas prisões acontece raramente e na maioria deve-se ao sentimento dos reclusos de que estão a ser injustiçados na gestão jurídica dos seus processos, por exemplo quando não lhes são concedidas saídas precárias ou liberdade condicional. Há também casos em que a greve visa a transferência para outro estabelecimento, por descontentamento com as condições ou pela convicção de que o caso será seguido de outra forma

- No entanto desta vez o caso não é esse, pois o recluso pede a demissão do governo, o que faz com que se esteja perante uma situação ainda mais rara.

- Uma situação de greve de fome numa prisão é sempre rara, e este caso não é diferente dos outros. Nestas situações, a decisão de não serem alimentados é para respeitar mesmo que fiquem inconscientes e desde que as circunstâncias na base do protesto não se alterem.

- Mas não teme pela vida de Aureliano Salgado caso continue em greve de fome?

- Nunca ninguém morreu por uma greve de fome. Ninguém quer morrer quando faz uma greve de fome, querem protestar. Os reclusos que fazem greve de fome acabam sempre por deixar esta forma de protesto, antes que seja necessário intervir e não me parece que este caso seja diferente.

- No entanto, Aureliano Salgado parece ser um recluso diferente dos outros e é muito provável que não desista e muito pouco provável que o governo se demita.

O jornalista cala-se e o entrevistado cala-se também, à espera de uma pergunta que tarda em chegar.

- E se o seu estado lhe retirar o discernimento para pedir para ser alimentado e a sua vida se encontrar em perigo? – pergunta agora o jornalista, perante o silêncio do outro.

- Julgo que numa situação de greve de fome que coloque em risco a vida do recluso devemos intervir. Assim como um guarda deve intervir se deparar com uma tentativa de suicídio de um recluso. Nesses casos a alimentação forçada justifica-se por completo.

Diz isto e cruza os braços numa inequívoca atitude de quem já disse tudo o que tinha a dizer. Pergunta a si mesmo que discernimento tem um homem que entra em greve de fome exigindo a demissão do governo e um sorriso ténue esboça-se no seu rosto sério.


Tal pai tal filho

 

 

 

O artigo apresentava-os como sonhadores determinados, como homens convictos e sensíveis, produto de diferentes circunstâncias temporais mas que convergiam um para o outro nos dias de hoje, como linhas paralelas que finalmente se encontram para lá da linha do horizonte. Era um artigo laudatório, ingénuo mas honesto, e Artur emocionou-se ao lê-lo.

O artigo dava um sentido à vida do pai, um sentido que o pai já não conseguia encontrar, ou talvez tivesse conseguido afinal, Artur não conseguia pensar nisso, assim como não conseguia pensar que sentido dera à sua vida, se é que algum dera, conhecer finalmente o seu pai e descobrir-se nele.

Gostaria que Aureliano tivesse lido o artigo, gostaria de o poder visitar, de conversarem sobre o artigo ou ficarem apenas em silêncio olhando-se, mas tal não é possível, o pai foi isolado dos restantes reclusos, não recebe visitas e não sabe nada do que se passa cá fora.

Nenhum membro do governo prestou quais quer declaração sobre o assunto. Diz-se que o poderão transferir para o hospital prisional. Diz-se que pode morrer. As pessoas interrogam-se, comentam, discutem, reclamam.

O caso insólito de um preso que arrisca a sua vida para exigir a demissão do governo é tema de todas as conversas, o país está atento.

 


A notícia

 

 

 

A notícia que Aureliano Salgado ia ser libertado espalhou-se rapidamente, quase tão rapidamente quanto a notícia da sua morte, tão rapidamente e tão em simultâneo que as pessoas se interrogaram se ele tinha morrido na prisão ou já em liberdade. Aureliano Salgado não chegou a ser libertado, sobre isso não existem dúvidas, no entanto a sua morte continua por explicar. Falou-se em morte natural, falou-se em erro médico, falou-se em suicídio e ate em homicídio.

Artur Falcão não se interrogou sobre as circunstâncias da morte, o pai estava morto, estava morto e bem morto e pela primeira vez imaginou-se a viver fora do país, este pequeno país agora convertido num enorme caixão. Não se interrogou se estava a ir finalmente atrás de um sonho ou apenas atrás de uma mera oportunidade.

Compareceu no funeral, triste e choroso, t-shirt negra, calças de ganga negras e ténis também negros. Permaneceu em silêncio, só o cravo vermelho que trazia na mão gritava a sua dor.


Escrever é viver entre parênteses

 

 

 

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspectiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conta, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.

 

 


O PREC ESTÁ VIVO

 

 

            A longa faixa que se estendia ao longo dos muros da prisão repetia uma única frase. O que muitos que a leram nunca souberam foi que também o lado de dentro da faixa repetia a mesma frase.

Artur sabe, mas não disse a ninguém, e muito menos explicou porque a fizera assim. Sentiu que tinha de a fazer assim para que fizesse sentido. Aquela faixa não tinha um lado de dentro nem um lado de fora ou, se os tinha, eles não se distinguiam, como acontece muitas vezes entre a realidade e a ficção.

Artur quer acreditar que o pai conseguira finalmente eliminar as diferenças entre o dentro em que vivera nas últimas duas décadas e o fora que há muito deixara de desejar. Artur queria acreditar que o dentro e o fora não conhecem fronteiras, pois dentro ou fora estamos sempre aqui. Aureliano libertara-se quando aceitara cumprir a pena e cumpri-la até ao fim, e de novo se libertara quando decidira levar o seu protesto até ao fim.

Artur estende com vagar a longa faixa.

Ninguém tenta impedi-lo.

O PREC ESTÁ VIVO. O PREC ESTÁ VIVO. O PREC ESTÁ VIVO...

 

 


O sonho

 

 

 

À velocidade da luz

 

A velocidade com que o protesto se estendeu por todo o país foi tal que pareceu surgir em todo o lado ao mesmo tempo. À velocidade, da luz, repetiu-se várias vezes, o protesto propagou-se à velocidade da luz, querendo com isso dizer-se que se propagou rapidamente, tão rapidamente que se mostrou impossível traçar o percurso do seu desenvolvimento. De repente, o país parou, de repente, o país estava na rua.

 

            O Povo está nas ruas

 

            Não apenas o povo estava nas ruas como todo o país também aí estava, e se considerarmos o povo todo o país, então o povo estava nas ruas, como se fosse uma única entidade, gritando com a mesma voz, caminhando no mesmo passo, erguendo os mesmos braços vitoriosos.

            Erguiam cartazes com as mais diversas formas e com as mais diversas palavras de ordem, num enorme poema colectivo que ria e chorava a alegria e a tristeza de serem finalmente livres.

           

           

 

 

O país parou

 

            Não pensem que exagero quando digo que o país estava nas ruas. Não pensem que exagero quando digo que o país era como que uma única entidade. Estavam todos nas ruas e manifestavam-se como um só. Gritavam como um só, choravam como um só. O país, finalmente acordado, todo em movimento, paradoxalmente parou. Não havia televisão, não havia rádio, não havia transportes públicos, tudo o que havia era aquela multidão na rua. O país estava na rua.

 

            O país em festa

           

            O país estava em festa. Homens e mulheres, novos e velhos, crianças e animais, todos estavam em festa. Cantava-se, dançava-se, todos sorriam e riam, e poucos se interrogavam sobre o que ia acontecer depois.

            Mas o que vamos fazer? – diziam alguns e logo muitos lhes respondiam que não se preocupassem, que depois se veria, que estava tudo bem, e continuavam todos a cantar, a dançar, a dizer poemas, a contar histórias, sorrisos acesos e risos ateados em todos os rostos.

 

            Quem nos ouve?

 

            As pessoas passeavam pelas ruas ao acaso. Falavam uma com as outras, sorriam, cantavam e riam. Gritavam-se ainda palavras de ordem, erguiam-se ainda cartazes de protesto, todavia pouco a pouco foram desaparecendo, substituídos por gritos de alegria e cantorias. Não havia a quem protestar, eram todos só um, o Palácio de São Bento estava vazio, as esquadras estavam vazias, os quartéis também. Estavam todos na rua, o país era um só. As pessoas passeavam ao acaso pelas ruas. Falavam uma com as outras, abraçavam-se, beijavam-se, sorriam, cantavam, dançavam e riam.


 

 

 

            O que se passou a seguir não posso contá-lo porque está ainda a acontecer e vocês sabem muito bem que assim é. O que acontecerá a seguir fica nas mãos da vossa imaginação.

 

 

 

 

 

 

 

Cruzeiro Seixas

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